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Críticas

Cineplayers

Um drama contemporâneo.

8,5

Poucos filmes expõem tão bem quanto os de Hong Sang-Soo a crise dramática enfrentada pelo cinema contemporâneo. No meio do caminho entre os experimentos radicais dos filmes de fluxo e corajosos filmes que ainda persistem no caminho do cinema narrativo, Sang-Soo fala sobre cinema não apenas em suas histórias onde a figura de estudantes, professores e cineastas são uma constante, apesar de poucas vezes efetivamente estarem exercendo sua profissão. A câmera do diretor está sempre enfocando quando seus personagens estão descansando, jogando conversa fora, comendo ou bebendo.

Sem brincar tanto com a própria estrutura do cinema quanto acontece em A Visitante Francesa (Da-reun na-ra-e-suh, 2012) e Nossa Sunhi (Uri Seonhui, 2013), A Filha de Ninguém é o tipo de drama intimista do diretor que muitos tendem a associar com Eric Rohmer devido à verborragia de seus personagens inseridos em grandes blocos temporais e longos planos que apropriam uma técnica do cinema – o zoom – de forma dramática, limando a necessidade do número de cortes na montagem através do reajuste de quadro. De forma calculada, o quadro é transformado através das ações e das transformações de seus personagens.

Associado normalmente com a ação, o zoom nos filmes de Sang-soo tem tanto sua função dramática – quando passa a revelar o que inicialmente não era visto – quanto distanciar o espectador, recordando que o que se assiste é um filme, já que tal movimento muitas vezes considerado rústico aqui passa a ser efeito estético, que junto com os longos planos sem cortes criam uma forma particular de se relacionar com seus filmes, com progressão episódica, personagens sem objetivos definidos e o senso de humor inusitado dos diálogos, que acrescentam uma acidez maliciosa à atmosfera plácida. Humor que pode – e muito bem – ser lido como a resistência de Sang-soo ao drama tradicional, com o cômico surgindo como uma anarquia minimalista, onde nosso horizonte de expectativas é bagunçado e questionado e os diálogos acabam pontuando com característica ironia a confusão de seus personagens.

O personagem “vagante” dessa vez é Haewon, uma estudante cuja mãe está morando no Canadá e cujo relacionamento com o professor de sua faculdade está abalado, já que o mesmo, casado, não assume o relacionamento dos dois e impelido por um moralismo tradicionalista, vive a criticar a garota quando a mesma admite ter agido de maneira mais liberal do que ele aprova. Toda a trama narrada pelas câmeras acompanha a fragilizada personagem em constante conflito. Um conflito dissolvido em meio a porres, a caminhadas e diálogos informais onde acontecem poucos eventos fundamentais de fato. O problema de Haewon é muito mais exposto e observado do que apresentado para ser confrontado, resolvido e transformado.

Até porque Sang-soo faz um filme que é praticamente só de confrontações – todas elas mínimas, ditados em meio aos supracitados planos longos e diálogos em ritmo e tom informal. Mas confrontações que não resolvem, porém, antes acrescentam novas dimensões ao problema: a dissolução da família nuclear, os relacionamentos amorosos entre diferentes gerações, as dificuldades de ter uma relação extra-conjugal, a vontade de fugir e o medo de ir embora.

Todas essas pequenas nuances ocupam sequências inteiras, o que faz com que A Filha de Ninguém não tenha um conflito claro. Há a situação, mas não há caminho didático do que deve ser feito. Em sua aparente falta de seriedade, o diretor fala de um mundo sem moral definida, e por isso mesmo muitas vezes com estruturas similares porém variantes, com questões recorrentes porém nunca menos perturbadoras. Entendemos Haewon, mas não há caminho certo a se seguir ou percepção clara. Não se sabe o que fazer; não se sabe se devemos confiar no desconhecido ou tentar reajustar o presente. A ambiguidade de seus personagens é justamente o que torna A Filha de Ninguém um filme tão rico em matéria de dramaturgia.

Filme aberto, com a história pré-filme pouco explicada e com um final inconclusivo, a nova obra de Sang-soo aposta na renovação de significação, na crise do tradicional drama burguês, na antítese da abordagem psicologizante e o favorecimento naturalista, no personagem enquanto parte do ambiente, e essa mesma atmosfera estabelecendo uma nova forma de misé-en-scene, onde os diálogos são parte fundamental, coordenados junto com os minimalistas movimentos de câmera ou a movimentação em cena que transforma o quadro estático e deforma a perspectiva.

A Filha de Ninguém é interessado em retratar essa “realidade objetiva” construída para a tela através dos grandes tempos diegéticos e ao mesmo tempo tratando de metalinguagem na exibição autorreferencial de suas estruturas, fazendo tudo isso ao mesmo tempo tanto com um senso de diversão quanto com um compromisso estético que gera filmes similares, com um norte muito parecido, mas que abrem precedentes ousados em matéria de construção dramática contemporânea. E o filme em questão é um dos grandes exemplares de um dos cineastas mais interessantes da atualidade, mais um exemplar de uma filmografia sólida e inconformada que parece longe de esgotar.

Comentários (5)

Ravel Macedo | quinta-feira, 26 de Dezembro de 2013 - 15:27

Sang-soo Hong não para. Este é o próximo na lista dos filmes deste ano.

Bernardo D.I. Brum | quinta-feira, 26 de Dezembro de 2013 - 22:57

hahahaha, não esqueci, Francisco! assim que tiver os dias mais livres já vou visitar os clássicos :D

Lucas Nunes | sexta-feira, 27 de Dezembro de 2013 - 23:50

Acabei de assistir e aplaudi de pé. Sang-soo Hong é o novo Woody Wallen!

Patrick Corrêa | quinta-feira, 22 de Maio de 2014 - 00:42

Adorei o filme, como todos de Sang-soo que vi agora. A maneira como ele expõe os conflitos de seus personagens, pela via da palavra e dos longos planos, é um achado.
Sobre a crítica, exagera no comentário de aspectos técnicos, apesar de bem escrita. Aliás, essa é uma constante nos textos do Bernardo.

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