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Filhas do Fogo, As

(Filhas do Fogo, As, 1978)
6,6
Média
13 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

O véu da incompreensão como combustível para o terror

9,0

Uma total incompreensão do terror costuma levar bastante gente a banalizar e a interpretar de uma forma completamente equivocada as mensagens das histórias desse gênero riquíssimo de significados. O susto pelo susto, os monstros pelos monstros, é assim que muitos encaram os livros ou os filmes situados nessa vasta seara. Essa incompreensão, normalmente, é oriunda do desconhecimento de que, por detrás de cada uma dessas histórias e desses monstros, há uma história e um monstro real, ainda que o segundo, às vezes, seja fruto das ansiedades e dos medos de pessoas como eu ou vocês. Consequentemente, cada susto é um gatilho disparado por uma situação que, bem como Pennywise, está ali, à espreita do menor sinal de fragilidade para nos aterrorizar. Esses elementos estão quase sempre lá, presentes nas obras de autores reconhecidamente ligados ao horror – Stephen King – ou na de realizadores ocasionais do gênero – Walter Hugo Khouri.           

Com uma filmografia composta por 25 longas e um curta – A Noiva do Catete, parte da antologia As Cariocas (1966) –, Khouri se caracterizou por trabalhos que esmiúçam a psiquê da classe média brasileira. No entanto, para os seus detratores, em sua maioria adeptos do “Cinema Novo”, movimento cinematográfico que voltava suas câmeras para os desfavorecidos e as mazelas sociais do Brasil, o cineasta de origem ítalo-libanesa era, na maior parte do tempo, um alienado interessado apenas nos problemas pequeno-burgueses de seus compatriotas mais abastados. Ou seja: gente como ele. Assim sendo, o véu do psicologismo, presente em filmes como o clássico Noite Vazia (1964) ou nos protagonizados pelo personagem Marcelo Rondi, seria mero subterfúgio. Por outro lado, se raciocinarmos com a cabeça daquelas pessoas que citei no parágrafo inicial, será que As Filhas do Fogo (1978), uma de suas duas películas de terror, poderia ser um ponto fora da curva dessa discussão?          

Registrado como um filme de 1978, mas lançado comercialmente somente no ano seguinte, As Filhas do Fogo conta a história de Ana (Rosina Malbouisson), uma jovem paulistana que viaja para Gramado, no Rio Grande do Sul, com a intenção de passar uma temporada com uma amiga, Diana (Paola Morra). A casa onde a segunda mora é uma propriedade gigantesca, com terreno rodeado por uma densa floresta de pinheiros e um lago pantanoso de aspecto sombrio nas imediações. Todo esse latifúndio é compartilhado com a governanta Mariana (Maria Rosa), que goza da total confiança da patroa, e mais um punhado de empregados. O paradeiro dos pais de Diana é uma informação que não nos é revelada logo de primeira. Não o da mãe, pelo menos. No roteiro assinado pelo próprio realizador, isso é um trunfo importante que contribui para o crescente clima de tensão que cerca toda a trama e acentua ainda mais o ar tenebroso do local que já é, por si só, absolutamente natural.   

O filme começa com uma tomada em que enxergamos Ana e Diana dentro de uma sauna. Elas estão vestindo apenas um par de toalhas. Conversam enquanto, languidamente, Diana escova os cabelos. Imageticamente, a cena mostra muito pouco. O que tem para ser visto, na realidade, está nas entrelinhas. As protagonistas exalam uma intimidade que nos faz pensar na verdadeira natureza daquela relação. É a delicadeza com a qual Khouri capturou esse instante que nos faz ter a leitura real do que está acontecendo ali. Em contraste, o bate-papo entre elas versa sobre assuntos mundanos, temas que fariam os detratores do diretor gritarem que suas críticas são acertadas e justas. Ana revela que mentiu em casa. Sua mãe considera a amiga uma louca, logo, não pode sonhar que ela está ali. Só posteriormente acompanhamos sua chegada. Esse primeiro momento, aparentemente banal, serve para introduzir o tema principal do longa.

Com a entrada em cena de Dagmar (Karin Rodrigues), uma senhora de aspecto tão sombrio quanto o lago, descobrimos o que houve com mãe de Diana: Silvia (Selma Egrei). Ela morreu de maneira jamais esclarecida naquelas águas avizinhadas da propriedade. O pai, desde então, não passa grandes temporadas por ali. Prefere viajar o máximo possível. A casa lhe traz péssimas recordações, já que o falecimento da esposa não é a única morte sem uma explicação lógica. Seu progenitor, o homem que idealizou e deu forma àquele lugar, um dia, subitamente, caiu duro entre os pinheiros. Um infarto? Talvez. Há quem acredite em outras coisas. Para completar o cenário horripilante, descobrimos também que Dagmar vive a perambular pelo mato gravando o que acredita serem as vozes dos mortos. Apesar do impacto inicial, as protagonistas, de um jeito ou de outro, acabam nutrindo uma curiosidade mórbida pelas gravações feitas pela senhora. Por meio desta curiosidade escancara-se uma porta para que saibamos mais sobre Silvia e, principalmente, seu relacionamento com Dagmar.

Com a mesma delicadeza que filmou a cena inicial, Walter Hugo Khouri nos transporta para a intimidade pregressa de duas mulheres e o faz sem o recurso de flashbacks. O único vislumbre concreto de um tempo passado não as envolve. A relação entre Silvia e Dagmar é atemporal. Visualizamos a primeira como um espírito. Ela não envelheceu, por isso o viço de sua juventude contrasta com a beleza encarquilhada da segunda. A curiosidade é uma porta também para as tradições locais dos imigrantes que colonizaram aquelas terras. Tradições que ora parecem vivas como nunca, ora parecem mortas e enterradas em um tempo distante ao qual não pertencem Ana e Diana. Ou será que, de algum modo, elas ainda pertencem?         

Khouri parecia estar à frente da sua época. Com o Brasil vivendo uma era de obscurantismo, criou, escreveu e dirigiu uma história sobre amores sobrenaturais. O terror e seus elementos espalhados aqui e acolá, sem nenhum grande efeito especial, apenas muita criatividade, cobrem feito um véu o que realmente está no cerne da trama: o amor daquelas quatro mulheres. E aí é de se questionar: o quão aterrorizante era viver esses amores em tempos obscuros? Elas não gozavam de liberdade. Por consequência, um relacionamento assim poderia se assemelhar mais a um claustrofóbico cárcere, no qual nos trancafiamos para escapar dos olhos inquisitórios dos outros. Metaforicamente, o filme retrata bem essa situação em uma impressionante sequência perto do fim. E contra eventuais reclamações dos detratores de que, mais uma vez, paira no ar uma preocupação pequeno-burguesa, há o argumento de que o tema principal é universal, inerente aos desfavorecidos e aos mais abastados. 

Crítica integrante do especial Abrasileiramento apropriador do Halloween

Comentários (1)

Rodrigo Torres | quinta-feira, 29 de Outubro de 2020 - 00:10

Mais um textão desse especial invocado do Ted.

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