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Críticas

Cineplayers

As imagens digitais e o capitalismo são as pedras de toque do novo filme de Godard.

8,0

Em 1982, Wim Wenders juntava no seu Quarto 666 (Room 666) diretores de cinema diversos presentes no Festival de Cannes e os perguntava: “Qual é o futuro do cinema?”. O dispositivo era simples: uma câmera e um gravador que deveriam ser ligados pelo próprio entrevistado e, ao fundo, uma televisão sintonizada. Entre os entrevistados, está Jean-Luc Godard, seu cigarro e sua postura contextualizadora relativizando e invertendo as teorias apocalípticas propostas por Wenders nas relações entre o cinema e a televisão. Nos extras do filme, Wenders comenta as entrevistas. Sobre Godard uma afirmação precisa: o domínio da mise en scène que o diretor tem em sua fala – os tempos, as pausas, as entonações, nada é por acaso, nada lhe escapa.

Essa demonstração, como inúmeras outras que o diretor já nos deu ao longo de seus inúmeros filmes e textos, deixa evidente que Godard é um dos diretores que mais domina o fazer cinematográfico. O que não quer dizer que ele faça, ou tenha feito, os melhores filmes sempre. O próprio Godard afirma, nessa entrevista, que a matéria do cinema é o invisível. Esse domínio absoluto godardiano nos leva muito mais em direção a esse “invisível”, ao ainda não feito, ainda não visto, as livres associações ainda não pensadas. Se, para o diretor, Hollywood está sempre fazendo o mesmo filme, é como se ele, Godard, procurasse fazer o filme que ainda não está ali. Da Nouvelle Vague às experiências com o vídeo no anos 1980, passando pelo coletivismo do Grupo Dziga Vertov, suas imagens (e seus textos, e seus blocos de ideias – em Godard, tudo caminha junto) sempre em busca do passo além.

Chegamos então, nesses passos ambiciosos do diretor, a sua produção mais recente. Considerando os longas-metragens de maior circulação depois do projeto megalomaníaco e genial das História(s) do Cinema (Histoire du Cinéma, 1997-1998), temos Elogio ao Amor (Éloge d’amour, 2001) e Nossa música (Notre musique, 2004). Em comum com Film Socialisme, o teor ensaístico das imagens, montagens e ideias. Uma certa proposta de cinema por blocos – que já havíamos visto nas História(s) do Cinema. Sendo Godard, por sua carreira, um realizador que não precisa mais provar o que quer que seja, a maior dificuldade do seu cinema atual é o aspecto pouco “comunicativo” (na falta de uma palavra melhor e que nos faça pensar menos em jornalismo) para o público – e, que fique claro, o cinema não precisa de forma alguma ser comunicativo para ser bom. Temos uma ebulição de livres associações, uma montagem inventiva e rica, o domínio absoluto sobre as imagens; mas, ao mesmo tempo, parecemos estar sempre em uma maratona quilômetros atrás das propostas do diretor.

Film socialism nos dá pouquíssimas portas de entrada para o seu universo de discussão, mesmo que jogue seus elementos constitutivos na nossa cara com veemência: a proliferação da imagem digital, as questões políticas contemporâneas, o confronto entre o cinema e a televisão e as relações entre o público e o privado na imagem, etc. Resta-nos, sem muitos portos seguros, mergulhar numa montagem vertiginosa por associação de imagens, jogos de palavras e sobreposições de ideias em constante deslocamento - aí o cenário de um transatlântico nos parece bastante pertinente.

O filme é dividido em três blocos de ideias/imagens. O primeiro se dá em um navio em alto mar. Partindo de onde? Indo em direção à que? Não importa. Talvez, em direção à África, Egito, Palestina, Nápoles, Barcelona... Em direção ao passado? A Segunda Guerra Mundial? Ao conflito judeu-palestino? Todas as grandes questões mundiais, passado e presente, parecem viajar dentro desse navio. Navio como uma Torre de Babel pós-moderna em que línguas e discursos se confundem, se misturam e, sobretudo, se perdem: são ditos para o oceano e levados pelo vento que sentimos pelo ruído dos microfones. Nesse cenário, a soma das micro histórias de cada personagem não leva a uma grande narrativa totalitária e de sentido único, mas a uma diversidade de vozes, corpos e experiências. Ou apenas aos costumes capitalistas de consumo – em determinados momentos, esse trecho do filme lembra muito Pacific, deleitando-se ao fazer a antropologia dos viajantes de um cruzeiro. Mas, ao contrário do diretor de Pacific, Marcelo Pedroso, Godard não está interessado na forma como cada viajante constrói suas imagens a partir de câmeras portáteis. As câmeras portáteis estão sob domínio do diretor, é Godard quem usará seus próprios planos pixelados para compor sua mise en scène heterogênea. Dobras de profundidade nas imagens contemporâneas: os gatinhos não miam apenas na pequena tela do computador – mas, também, gigantescos na telona. Dentro do cruzeiro, a proliferação de imagens amadoras: as recordações dos turistas. E não foi o próprio Godard quem disse que se vê melhor quando se filma? É o cinema passando por muitos dispositivos e telas. Longe da questão de Wenders: o cinema contra a televisão, mas o cinema além da TV, além do computador. O primeiro jogo de sobreposição com o nome: filme socialismo em um centro de consumo capitalista como um cruzeiro.

No segundo bloco do filme, a disputa familiar. Uma espécie de crise que representa os desafios da própria sociedade francesa: “é preciso aprender a dizer nós, para se poder dizer eu”, explica o patriarca posto à prova por seus próprios filhos. Para acompanhar o debate, temos uma câmera e uma jornalista de um programa de televisão. A questão do público e do privado torna-se evidente: quais seriam os limites do íntimo? As questões de poder e política não seria sempre de ordem coletiva? Mais uma vez a discussão do capitalismo, mas dessa vez passando pelas relações familiares. Afinal, o núcleo da família é uma empresa: a garagem, o pequeno negócio familiar. São os filhos do capitalismo democrático que querem subvertê-lo: querem poder. Temos as relações políticas de poder se sobrepondo ao laços familiares. “Não falar do invisível, mas mostrá-lo”, diz a filha Florine re-afirmando o projeto de cinema do diretor.

Por fim, Godard volta-se para nossas humanidades, em um bloco de ideias/imagens quase documental. Seu discurso deixa de passar pela boca dos personagens para ser articulado diretamente pela montagem do diretor. Nesse momento, Godard volta-se para o próprio cinema re-visitando sua imagens ontológicas, seus fantasmas. Mais uma vez, todas as questões importantes do mundo contemporâneo. E voltamos ao navio: o ponto de incerteza, mas de deslocamento. Para terminar com o aviso anti-pirataria do FBI seguido da frase: “Quando a lei não é justa, a justiça passa antes da lei”. Eis Godard, mais uma vez, respondendo a pergunta “qual é o futuro do cinema?”. Levando-o para onde ele ainda não é – nem que seja para os gigabytes da codificação dos computadores: o invisível.

Comentários (1)

Rodrigo Barbosa | sexta-feira, 14 de Outubro de 2011 - 09:20

"Godard, depois da nouvelle vague, se transformou num diretor pretensioso e pseudo-intelectual. Nessa transição perdeu todas as características notáveis que fizeram de seu primeiro cinema algo tão verdadeiro. Film Socialisme é a prova concreta disso. " (Heitor Romero).

Caro amigo Heitor. Respeito a sua opinião acerca do filme e do diretor, mas não posso perder a oportunidade de julgá-la ampla e totalmente equivocada. Film Socialism mostra um Godard maduro, inteligentíssimo (como sempre foi) e sensível ao turbilhão de novos rumos sendo tomados pela sociedade. Quem disse que o Godard é "pseudo-intelectual". Quem sou eu ou quem é você pra dizer que uma figura como Godard é um "pseudo-intelectual"?

Se eu fosse um pseudo-itelectual como Jean-Luc Godard eu me satisfaria com a minha condição, se capaz fosse de por em ordem todas as reflexões e questionamentos ao futuro do mundo, do cinema e das relações intra-sociais que ele enfileira em seu novo filme.

Quanto à crítica da Kênia. Perfeita!

'Eis Godard, mais uma vez, respondendo a pergunta “qual é o futuro do cinema?”. Levando-o para onde ele ainda não é – nem que seja para os gigabytes da codificação dos computadores: o invisível."

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