Existe um tipo de cinema que não se interessa em oferecer respostas, muito menos em conduzir o espectador por caminhos conhecidos. Fire Supply, novo trabalho da cineasta argentina Lucía Seles, não apenas se encaixa nessa categoria, como faz dela sua principal diretriz. Aqui, não há espaço para resoluções, muito menos para narrativas convencionais. O que existe é o desejo puro de experimentar — seja com a linguagem, com a estética ou, sobretudo, com a própria percepção de quem está assistindo.
Ao longo de 2h36, o que se vê é uma coleção de situações que, se vistas isoladamente, poderiam ser encaradas como recortes banais do cotidiano. Mas o que Seles faz é embaralhá-las, reorganizá-las e potencializá-las por meio de escolhas que desafiam qualquer expectativa: a câmera que gira, treme e inclina em ângulos improváveis; as legendas que surgem espremidas nos cantos, dividindo espaço entre espanhol, inglês e português; e os comentários da própria diretora, que aparecem entre uma cena e outra como se estivéssemos assistindo, ao mesmo tempo, ao filme e ao seu making of.
Não há protagonistas, nem mesmo arcos dramáticos no sentido clássico da palavra. São pequenos agrupamentos de personagens que se cruzam, se afastam e se encontram de novo, sempre regidos por uma lógica que não obedece a mais nada além da própria pulsão do momento. Tem o rapaz que acompanha a mãe num flerte inesperado; a jovem que hesita em fazer sua primeira tatuagem; o contador apaixonado por táxis; a tenista que enxerga numa aula qualquer a chance de transformar sua vida; e até uma atendente obcecada em ganhar um inusitado concurso de quem fuma com mais estilo. Todos eles compartilham da mesma premissa: precisam se abastecer emocionalmente, como se esse fosse o combustível necessário para continuar existindo nesse universo à parte que Seles propõe.
É curioso perceber como esses encontros, por vezes carregados de uma ternura quase infantil, jamais flertam com a malícia ou com a ironia. Quando um personagem anuncia que sua mãe tem interesse em outro homem, não há olhares enviesados nem subentendidos. Tudo é dito de forma literal, crua, direta. E, por mais estranho que isso soe, também é profundamente honesto.
Só que essa mesma dinâmica que encanta no início, com sua aura de novidade e frescor, aos poucos também se torna um tanto exaustiva. A impressão é de que a diretora se apaixona tanto pelo próprio universo que cria, que se recusa a abrir mão de qualquer ideia que surge no processo — por mais desconexa ou aleatória que ela pareça. E assim vão surgindo legendas que comentam sobre o figurino dos figurantes, números aleatórios que piscam na tela, observações sobre a quantidade de cafeterias na rodoviária, e por aí vai.
Por outro lado, há uma beleza muito particular nessa aparente desorganização. Porque, no fundo, Fire Supply também é sobre isso: sobre encontrar sentido no caos, sobre transformar o ordinário em extraordinário, sobre observar o mundo sem a obrigação de que tudo precise fazer sentido. A escolha por uma estética que abraça o improviso reforça essa proposta. É um filme que se permite ser feio, estranho, desconfortável. E, justamente por isso, se torna tão autêntico.
O elenco, quase todo formado por colaboradores habituais de Seles, entende perfeitamente esse jogo. Ninguém atua no sentido tradicional. Eles simplesmente existem em cena, como peças de uma coreografia desajeitada, onde o ridículo e o sublime andam lado a lado. E talvez aí esteja o maior trunfo do filme: fazer da simplicidade das interações humanas, por mais tolas que pareçam, matéria-prima para um cinema que, mesmo quando erra (e erra bastante), nunca deixa de ser pulsante.
No fim das contas, Fire Supply é menos sobre contar uma história e mais sobre criar uma experiência. Uma experiência que pode, sim, ser cansativa, repetitiva, até mesmo tediosa em alguns trechos. Mas também é capaz de provocar encantamento, riso e, quem sabe, até uma dose de reflexão sobre como lidamos com nossos próprios afetos no dia a dia.
Filme assistido no Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.
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