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Críticas

Cineplayers

Fitzcarraldo comprova sua poética narrativa tanto com imagens filmadas com maestria quanto pela belíssima mensagem.

8,5

“Nós somos feitos do tecido de que são feitos os sonhos”.

Começo este artigo sobre Fitzcarraldo citando um dos mais famosos pensamentos do dramaturgo inglês William Shakespeare, autor de inúmeros clássicos da literatura mundial. Mas, afinal, o que teria Shakespeare a ver com Werner Herzog, diretor da obra em questão? Nada e tudo, repartindo o mesmo embrulho de significância. O excêntrico cineasta alemão jamais utiliza qualquer pensamento shakespeariano ao longo desta grandiosa e megalômana produção (aliás, a sentença acima é referenciada na obra-prima inigualável O Demônio das Onze Horas, de Jean-Luc Godard, em meio a outras tantas referências artísticas e filosóficas que emolduram um dos maiores feitos da humanidade – e não apenas artisticamente falando), mas, parece que evoca e reflete a supracitada frase do finado pensador a cada segundo deste impressionante, poético e reflexivo épico sobre o combustível que move a existência humana: os sonhos.

 

Afinal, de nada mais trata Fitzcarraldo se não de sonhos, não importando a origem, a imensurabilidade, a significância, a plausibilidade ou nenhum outro fator externo que possa interferir, tanto para auxiliar quanto para dificultar sua realização. E é de sonhos que se constitui a essência de Brian Sweeney Fitzgerald, ou, como o próprio prefere se chamar, Fitzcarraldo (nome cuja origem se dá na linguagem nativa da região em que é ambientada a obra), protagonista deste filme. Irreverente, endiabrado e com constantes delírios de grandeza, Fitzcarraldo, após desistir da construção de uma linha férrea em meio à floresta, parte para um novo desafio: agora, quer, a todo o custo, construir o maior teatro de ópera que a selva amazônica já vira em todos os tempos, em um lugar completamente isolado do mundo, no meio da mata nativa. Para tanto, não mede esforços nem muito menos dimensões, tentando fazer do impossível seu mais fiel aliado e, ademais, o que é pior, o verdadeiro e único objetivo a ser alcançado.

 

Interpretado com maestria e muita, mas muita intensidade por Klaus Klinski (que já havia trabalhado com Herzog em outras produções, tais como a obra-prima do diretor, Aguirre, a Cólera dos Deuses, e o interessante Nosferatu – O Vampiro da Noite), Fitzcarraldo é a caricatura artística de certa parte obscura da personalidade humana: aquela que, acima de tudo, trabalha com a necessária alimentação dos sonhos e, principalmente, com a ânsia de realizá-los. Ao longo de toda a narrativa, vemos o protagonista xingar, chiar, bufar, berrar, mover montanhas (acho que, neste caso, literalmente mesmo) e qualquer outro elemento - natural ou não - que venha a obstruir seu “preestabelecido” destino, desenvolvendo uma efusiva obsessão com traços fortes e realistas de um fato que podemos constatar diariamente, a cada minuto de nossas vidas: não somos nada sem nossos sonhos, desde a vontade de ir até a cozinha pegar uma xícara de café até o desejo de ser o mais famoso cineasta de Hollywood.

 

No caso de Fitzcarraldo, o filme, desejo, sonho e realização se fundem em um delicioso processo de intersecção entre obra e criador. Ao mesmo passo que restava grandiloqüente a meta do protagonista, quando desenvolvido o argumento, apresentava-se praticamente irrealizável o processo de filmagem planejado por Herzog, irrevogavelmente um dos cineastas mais ambiciosos e doidivanos da história. A idéia, a princípio, é realmente ousada, caso seja analisada a situação com olhos frios e clínicos de um cirurgião, mas ainda concebível: emaranhar uma grande equipe de produção, junto de um bando de nativos, no coração da parte peruana da floresta amazônica, para registrar a odisséia de um homem em busca da realização de seu sonho impossível (o que, na verdade, conhecendo Herzog, não parece nada improvável, visto que, para uma de suas primeiras produções, Aguirre, já havia feito a mesma coisa, após furtar uma câmera da escola de cinema em que estudava, na Alemanha).

 

A maneira com a qual o cineasta se armara para realizá-la, porém, torna a concepção desta saga algo particularmente limítrofe, no que concerne à capacidade humana. À época da produção, Herzog, em um ato não muito surpreendente ao ser levado em conta seu protagonista, rasgara o contrato feito com os estúdios Fox para a produção do longa, devido a um conflito de ideologias referente a certa seqüência da obra: enquanto os executivos que financiariam a produção queriam que fosse reproduzida em estúdio cenográfico, o alemão ressaltava que deveria ser feita exclusivamente em locação real. Qual é a cena em questão? “Muito simples”, deve ter afirmado Herzog ao engravatado com a caneta em punhos: um bando de nativos, munidos com algumas cordas e roldanas, elevando até o topo de uma montanha um navio com cerca de cento e trinta metros de comprimento, cento e sessenta toneladas de madeira e ferro do mais resistente.

 

Ao largar a parceria com o estúdio e acertar com seu próprio irmão para tocar em frente a produção, Werner Herzog se dirigiu para o centro da floresta amazônica a fim de rodar a tão sonhada seqüência. E assim o fez. O resultado dessa empreitada praticamente inconcebível, no momento, o grande sonho do cineasta (e é aqui que se encontra o núcleo do processo de intersecção entre obra e realizador, referido parágrafos acima), pode ser vislumbrado em uma magnífica e impressionante seqüência, marcada por alguns percalços e muitos acertos, mas, acima de tudo, transpirando um ar que jamais seria inalável caso tivesse optado pela maneira mais fácil de se fazer. Podemos sentir o odor das folhas molhadas da selva úmida, o peso leve do ar puro e oxigenado pelas plantas inúmeras que rondam a ação. Transformamo-nos em mais um dos diversos homens presos ao sonho de Fitzcarraldo. E passamos a admirá-lo. Tanto a cria, quanto seu criador. É um momento sublime, impecável, que poderia ser transposto à tela apenas por alguém como Herzog.

 

Mas, não é somente neste espaço de tempo fílmico que brilha a estrela excêntrica de Herzog. Ao longo dos mais de cento e cinqüenta minutos de projeção, é impossível não entrar em estado de completa admiração com a impressionante perícia técnica apresentada, com a manipulação da natureza realizada pelo diretor. Às vezes, as imagens parecem denunciar uma relação de cumplicidade, uma parceria sobre-humana que entorna a câmera que capta a ação. Cada plano constitui um conjunto de imagens belíssimas, realizadas em tom praticamente documental, que apresentam ao mundo a vasta verdidão das folhas das árvores, a aglomeração cristalina das águas dos rios, o respirar pesado dos animais da selva – tudo isso, ainda, embalado por uma trilha sonora belíssima, com óperas européias que rompem os sons da natureza de forma admirável. É como se estivéssemos vendo uma inusitada mistura de filme delinqüente, existencialismo humano, drama de personagem, retrato histórico e documentário do Discovery Channel.

 

A mistura, embora completamente inusitada, define bem a indefinição genérica desta obra de arte. Tudo é muito grandioso para que fiquemos presos a conceitos predefinidos. Werner Herzog, em seu projeto mais ambicioso e pretensioso, realiza um trabalho de exatidão, um exímio reflexo e, porque não, estudo da importância dos sonhos na vida de todos nós. Contando ainda com um elenco de qualidade, do qual fazem parte a bela Claudia Cardinale (Era Uma Vez no Oeste) e um vasto grupo de figurantes sul-americanos (alguns, inclusive, brasileiros), Fitzcarraldo comprova sua narrativa poética tanto pelas imagens filmadas com maestria operística quanto pela belíssima mensagem que nos deixa após um final de impressionante sensibilidade, no qual a simplicidade de um único momento contrasta com a megalomania que rege todo o desenrolar da aventura, mostrando que a conquista de um sonho pode ocorrer da forma mais singela e natural possível: pela emotividade de um sorriso.

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