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Críticas

Cineplayers

Mais um belo filme da carreira do japonês Ozu, que mostra seu amadurecimento total como diretor. Seu primeiro filme a cores.

7,5

À primeira vista, este pode parecer um filme 'tipicamente de Ozu', em se tratando do pós-guerra. Todos os elementos estão lá: a família japonês de classe média, a filha solteira, o tema do casamento, as conversas de escritório, os bares de bairros humildes. Mais especificamente, remete à Pai e Filha, obra-prima de 1949 que inaugurou a fase de dramas familiares na carreira do diretor. Mas o sentimento aqui não é o de continuidade, e sim o de nostalgia. A mudança dos tempos trazida pela Ocupação já começava a mostrar suas raízes na trilogia de Noriko (em especial, Era uma Vez em Tóquio) e, ao contrário das mudanças superficiais e comportamentais que vemos em Pai e Filha e Também Fomos Felizes, aqui a mudança está na própria estrutura da sociedade.

O foco principal da narrativa está na família Hirayama. O clima é de festividades. A filha de um dos amigos do patriarca da família, Wataru, está se casando. Na cerimônia, Wataru levanta-se para propor um brinde; ao casal dos novos tempos, que escolheram se casar por livre arbítrio, contrastando com os casamentos arranjados de outras eras, dos quais seu próprio casamento com a senhora Kiyoko faz parte. Todos os companheiros e amigos de Kawai - o pai da noiva - estão lá, exceto pela filha do velho Mikami, Fumiko, cuja ausência é bastante comentada. Ao chegarem em casa, o casal Hirayama vai conversar com suas duas filhas sobre a questão do casamento. Hisako ainda está no secundário, mas a filha mais velha Setsuko já está suficientemente adulta para pensar no assunto, e esta mesma diz que não tem nenhum pretendente ainda. Mais tarde, ao conversar com Mikami sobre a falta da filha na cerimônia, este diz que ela na verdade fugiu de casa e foi morar com um namorado. Este pensamento perturba profundamente Wataru, que começa então a procurar alguém digno de esposar sua filha, contrariando seu ideário de 'casamento por amor' expressado por ele no começo da estória. É então que ele fica sabendo do desejo de Setsuko em se casar com um colega da firma, trabalhador comum, e Wataru se põe contra a união.

O filme já começa a distoar a partir daí. Em todos os outros filme em que a questão do casamento é colocada em jogo, é o pai/sogro que quer ver a filha/nora casando, seja com quem for, e esta se recusa por um motivo ou outro. Temos pela primeira vez uma inversão de papéis, apesar de que o brinde de Wataru na cerimônia encaminhasse para o mesmo caminho de Pai e Filha. Mas não é apenas nesta hora que ele assume uma postura mais liberal; há duas outras moças na estória com o drama parecido com de Setsuko. A primeira é Fumiko, que fugiu de casa quando o pai foi contra sua união com o namorado; Wataru encontra-a como garçonete num bar, e conversa sobre sua situação com o namorado, e se ela se sente realizada. A segunda é Yukiko, filha de uma amiga de Wataru, que veio com a mãe de Kyoto; ela reclama que a mãe não larga do pé dela, que está sempre procurando um jovem médico para ser seu marido, e à ela o velho Hirayama aconselha que ignore a mãe, e não se preocupe tanto em casar. Nos dois casos, ele é (respectivamente) compreensivo e conselheiro, mas com a própria filha ele é teimosamente arcaico. Certo, ele mal conhece o rapaz, foi pego de surpresa e em parte é uma comum e perdoável inveja da filha, mas toda a queda-de-braço dos dois é uma defesa contra sua própria fragilidade como o patriarca.

Foi-se o tempo em que os filhos tinham para com os pais uma fidelidade inquestionável. Essa autoridade paterna excessiva nunca (ou raríssimas vezes) foi usada no cinema de Ozu, e da primeira vez em que é posta em xeque, ele percebe que não a tem mais. Setsuko pretende se casar com alguém que ele não conhece e, ainda que ela prefira a aprovação dos pais, está mais que disposta a seguir adiante sem ela. Wataru sempre posou de liberal, e agora está voltando atrás; mas ele próprio percebe o absurdo da situação, e quando é confrontado pela mulher sobre o assunto, ele apenas diz que "a vida é cheia de contradições". Por mais vazio e insonso que pareça esse discurso, a verdade é que ele tem medo. Ao curso do filme, ele só ganha uma das inúmeras discussões com a mulher (justamente a mais banal), suas filhas não mais o respeitam (na opinião dele), e todos estão conspirando contra ele na sua decisão de não aceitar o casamento da filha e, mais tarde, de não comparecer ao casamento. É o próprio retrato do envelhecimento.

No começo do filme, enquanto ele conversa com a mulher, esta diz que suas melhores lembranças são do tempo da guerra, onde a desgraça unia as pessoas e a família, enquanto Wataru apenas vê o lado negativo da guerra - bombardeios, falta de provimentos - e diz ter sido o pior período. Já no fim do filme, numa reunião com seus antigos colegas, ele percebe que aqueles tempos eram de fato bons, onde a antiga hierarquia mantinha a estrutura em ordem, e todos cantam em coro uma ode aos bons e velhos tempos: uma antiga canção patriota sobre um poeta devoto ao Imperador. O sentimento de nostalgia do filme é agravado com a convocação de dois antigos colaboradores de Ozu para os papéis principais. Temos Shin Saburi, como o velho Watari, que já havia participado nos filmes da época da guerra do diretor, e a imortal Kinuyo Tanaka como a senhora Hirayama, ela que havia participado de tantos filmes dele da década de 20 e 30 (com destaque para A Delinquente) e não aparecia desde Irmãs Munekata, faz aqui sua última aparição num filme do diretor, numa maravilhosa atuação. O resto do elenco é todo novo, e voltaria a aparecer nos outros filmes de Ozu daqui para frente. A única excessão é de Chishu Ryu, maior habitual do diretor, que tem aqui um papel menor como Mikami (mas ainda assim consegue se destacar, com uma belíssima recitação de poema no fim). É interessante também notar que, em todos os filmes com o casamento como pano de fundo, Ryu é o pai/sogro, exceto neste filme; talvez seja por isso que este é o único em que o pai vai contra.

Mas, ao mesmo tempo em que o filme é sobre a saudade do que já passou, é também sobre a esperança do que está por vir. Por mais que a vida seje dura para Fumiko, por exemplo, ela está feliz com o namorado, e a cena final é particularmente otimista; o filme abre com uma estação de trem vazia, e termina com Wataru indo de trem visitar a filha e o genro em Hiroshima, imobilidade X movimento (por si só a mudança). O próprio título remete à isso; a flor de equinócio mencionada nasce no outono (estação da velhice) e floresce no verão (estação da juventude), que é a estação onde o filme se passa. Aliás, outro fato que remete à isso é a própria fotografia. Pela primeira vez um filme de Ozu é rodade colorido, a última das novidades técnicas aderida pelo diretor, e ele escolheu uma película pouco popular na época, a afga (em contraste com a quase unanimidade da kodak nos EUA), que, entre outras coisas, realça bastante o vermelho (cor da flor do título). É apenas o primeiro filme a cores do diretor, e já se vê um minimalismo com relação ao novo elemento, com vários detalhes em vermelho e branco cuidadosamente postos no ambiente para realçar um ou outro fator. O mais famoso (e óbvio) é o de uma chaleira vermelha que fica no canto da sala de jantar. Ela nunca é posta em evidência, está sempre escondida lá no canto, enquanto uma ação é vista no primeiro plano, mas sempre reparamos nela. O fato dela chamar tanta atenção e de ser vista se quase todos os angulos de câmera na casa também serve como marcador geográfico, para nos auxiliar a nos localizar nas constantes (e quase imperceptíveis) mudanças de plano de 180 graus.

Feito apenas um ano após Crepúsculo de Tóquio (um dos filmes mais tristes do diretor e, porque não, do cinema japonês), Flor de Equinócio prepara o ritmo para os outros trabalhos reminescentes de Ozu, que morreria cinco filmes mais tarde, em 1963. Este último período colorido na sua carreira é marcado por um amadurecimento de todas as suas idéias e técnicas pelas quais ele ficou conhecido: câmera baixa e estática, enquadramentos trabalhados, plano-contraplano de 180 graus, diversas elipses narrativas (inclusive este filme brinca bastante com isso, assim como a câmera subjetiva, na nossa percepção do espaço e tempo). O clima aqui é de maior redenção e tranquilidade, já tendo saído da dramaticidade tour-de-force do seu período pós-guerra preto e branco, e o humor está sempre delicadamente presente, seja num funcionário tentando passar boa impressão ao chefe, ou as tramas de Yukiko para convencer o velho a mudar de idéia com relação à filha. Mesmo assim, o longa tem suas falhas, Wataru revive bastante as mesmas conversas e brigas com a filha e com as outras duas garotas, e eu achei que o roteiro se acovardou ao retratar o namorado de Setsuko como um marido quase que ideal, como se quisesse mostrar que, só por isso, Wataru aceitou o casamento, quando na verdade o filme vai por outro caminho. No final das contas, é um filme mais "fraco" que os outros do período, mas o que é um Ozu menor em comparação à todo o resto?

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