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Fogo Contra Fogo

(Heat, 1995)
8,3
Média
686 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Disciplina personalista do cinema policial encontra o rigor estético do animal Mann

10,0

Normalmente não começo com citações e/ou frases feitas, que assim sejam alcunhadas, de algum filme, mas que se lasque.

“Não assuma compromissos com nada que não possa largar em 30 segundos se a coisa suja na esquina. ”

Esta é a disciplina necessária ele diz.

Uma disciplina tática, crua, brutal e escrota. Disciplinas estas (na porra do plural mesmo) são seguidas e expostas magistralmente nesta obra prima do foda Michael Mann. Ação e reação. Mann trata de pôr a porra toda numa narrativa de densa sobriedade – mas não sem uma aspereza de sentido moral – que tem a primazia de apresentar personagens e seus dramas bem definidos onde se estabelecem os conflitos centrais diretamente, porém sem a mínima pressa para resolvê-los. O que interessa aqui é o posicionamento moral frente ao absurdo cotidiano. O que é a moral? Pra quê e pra quem ela serve? Não há julgamento moral aqui. Há embate.

O estabelecimento das funções e das respectivas lideranças e vicissitudes pessoais e profissionais são transpostas com um esbanjamento narrativo direto que consiste em estraçalhar quaisquer maniqueísmos diante do confronto dos antagonistas Vincent Hanna (Al Pacino) e Neil McCauley (Robert De Niro). Este grande cinema é direto. Estabelece suas concepções narrativas morais e estéticas sem firulas ou frescuras fúteis e desconexas de linguagem, mas, sim com uma puta densidade e segurança que visa a caracterização de diferenças e semelhanças entre os dois personagens principais. E este enriquecimento só faz crescer a expectativa pros vindouros confrontos.

O elenco é primordial para toda a construção especificada que Mann propõe, o que nos traz ao duo principal de monstros, onde a absorção deles em cena exige um olhar para trás que, de forma intrigante, percebemos aqui a intenção de propor este embate prestigioso de lendas de dois caras históricos ao cinema policial norte-americano. De figuras que foram partícipes, no eixo viral da nova hollywood. Deste cinema cínico e grosseiro. Tais quais Serpico (Serpico, 1973), Dia de Cão (Dog Day Afternoon, 1975), Parceiros da Noite (Cruising, 1980), Taxi Driver (Taxi Driver, 1976), Caminhos Perigosos (Mean Streets, 1973), entre outros. E esta configuração não é mera punhetagem metalinguística, e sim é um assalto oportuno e criminoso por sobre a representatividade destes caras e do cinema como mote de vilipendio moral. E este crime é genial.

Cena a 2. O embate discursivo frontal. A intimidade dialética. Pacto e conduta moral. Esta bagaceira toda está presente no café. Num inquietantemente confortável plano-contraplano vemos o encontro esperado. O encontro entre as lendas da urbs do cinema policial em diálogo entre Vincent Hanna e Neil McCauley. Esta conversa primordialmente escrota mostrar-se-ia necessária para determinar o significado de onde a conduta moral extrema dos caras os leva. A angústia necessária de um pra manter-se no limiar do insuportável que o conduza firme e não o torne mais um passivo social, que neste extremo seria fatal em quaisquer empreitadas futuras caso ficasse sem sua preessão necessária para o próprio trabalho. A exposição desta angústia física e mental. Há também em afirmação uma disciplina obsessiva e virulenta que não pode hesitar independentemente de relações e afinidades. Frases que se encaixam em ambos e que os colocam em conflito. O sentido genial da intimidade dialética entre os dois. A mutualidade destas idiossincrasias forma o caráter, porém, logicamente, implica numa contrariedade moral que tange num ponto de civilização nos regramentos de co-existência coletiva social, afinal ainda existe um ladrão e um policial. O que os diferencia não deixa a desperceber o respeito deste jogo. Mann aqui direciona a linguagem e a torna densa na relação física numa frontalidade objetiva. Aqui jaz o maniqueísmo.

Imagens a esfolar. Eu preciso citar a influência narrativa e moral do western no cinema policial e a imagética também deste último no cinema do Mann? Ainda mais quando o mesmo faz questão de expor as mesmas tanto quanto um serial killer tem tesão por vísceras. Preciso é o caralho. A exposição é tácita. As imagens arrombam. Uma fotografia de excelência com um modo operacional objetivo numa questão de perspectiva em profundidade na ação coletiva banhada em tons frios e sóbrios. Tons de uma sobriedade doentia. De uma espera pelo inevitável. O desfoque de profundidades de campo em determinados momentos de uma intimidade substancial – como na intimidade de McCauley e uma mulher em meio à esculhambação que o cerca –  denota o quão é tangível a dilaceração problemática de um modo de vida denso e decifrável pela tensão que estupra o senso comum. O pessoal e o familiar não compõem com a prospecção dos extremos. Este desfoque é a destituição tácita do direito inalienável a esta constituição familiar clássica. O extremo não permite funcionalidade plena daquilo que conhecemos como familiar. Por isso as cores frias e a neutralidade dum preto sombroso vão circulando os dois monstros, com estas paletas a os cercarem por estarem sempre, e disciplinadamente, sozinhos. A escolha por esta solidão prevalece, e esta sempre vai ser de um azedume obrigatoriamente frio.

Não posso passar despercebido nesta fuleiragem sem citar o absurdo tiroteio deste filme. Que não se filmam tiroteios como Michael Mann no cinema já é sabido, porém abraço-me no falso exagero em afirmar que este é o melhor tiroteio que já absorvi. Para além de todo estabelecimento de uma tensão crescente, de uma espera fatal neste embate, Mann dispõe-se a dar uma aula de direção. Escolha de planos numa mise-en-scène invejavelmente brutal onde se corrobora com uma montagem decidida. Mann aqui estabelece um parâmetro na ação como catarse intrínseca e violentamente direcionada a uma visceralidade imponderável. A questão do inevitável é exposta na ação e reação direta das escolhas e condutas morais nas quais tanto enchi o saco citando aqui. Um ex-condenado volta ao crime, um pai abandona a família, um policial decide ir pra porrada. A morte aqui é uma referência de responsabilidade moral. Tal e qual não poderia ser mais suja e incisiva.

Os lados de uma mesma moeda explicitados em roteiro e linguagem, e o que é frontal à linguagem. O que se enxerga é a construção de imagens dos caras onde nunca estão compostos farsescamente lado a lado em quaisquer planos. O papo é reto. Pacino e De Niro sempre estão de frente um para o outro na decupagem. São próximos e contrários caramba. A técnica em confabulação criminosa com a narrativa. A aura de conflitos inevitáveis possui uma metodologia que dita um ritmo crescente e dialético entre os escrotos. Principalmente pela densidade via um fórceps lento, doloroso e meticuloso de fora pra dentro, buscando um discurso intenso da condição moral pela qual os sujeitos defendem suas intenções. O policial incansável que deteriora vagarosamente sua vida particular em prol do trabalho amargo e, por vezes, mentalmente escatológico em contato com um ladrão absurdamente disciplinado que passa a mudar sua rotina via uma interação humana inesperada. O que estas condições fazem com as pressões que os mesmos sofrem? E o já tão escrotamente explicitado código moral como age? Mann não explica. O animal do Mann violenta o expectador com as imagens. Explicação o caralho. Isto aqui é cinema. E cinema se faz com a merda das imagens em movimento. Masturbação explicacionista só é levada a cabo por incompetência e mastigação narrativa. Não tem porra nenhuma disso aqui. Quer entender como o código moral de ambos funciona? Para além do primeiro encontro físico, veja o diabo do final do filme. Não há sequência de planos mais emblemática neste sentido do que o embate físico final. Os últimos frames porra. O aperto de mãos dos antagônicos mortais diante do único fim possível.

Toda esta parafernália de linguagem pela qual me debrucei sebosamente nesta caralha justifica majoritariamente a mim o tesão pelo cinema. Este cinema criminoso e frontal que me faz escrever sobre e produzir cinema como realizador marginal que sou. O crime. Um cinema criminoso e necessário ou preciso explicar a citação do início?

Material escrito em 07/11/2017 e agora devidamente bem publicado.

Comentários (2)

Igor Guimarães Vasconcellos | terça-feira, 25 de Agosto de 2020 - 10:39

A palavra frontal nunca fez tanto sentido para um filme, para um texto, e para um crítico.
Gosto de pensar que o contraplano, os lados da mesma moeda, ou ainda o espelho estejam sempre pronto para esculhambar, no sentido positivo, o olhar que tenho para esse filme e para esse amigo.
É uma viagem ler os teus textos.
Esse filme daria umas boas paginas de cada sequência, mas esta que vc puxou e o tiroteio realmente são do caralho.
O que será desse 2?

Ted Rafael Araujo Nogueira | quinta-feira, 10 de Setembro de 2020 - 19:04

Valeu demais meu camarada. Cara a esculhambação via frontalidade. A tensão mental incessante de figuras que agem sempre no limite de suas condições. Se vacilar e esmorecer, papoca. Um esquema exponencial do destroçamento.

O 2 bicho. A dupla. O maniqueísmo. A dualidade milenar. O yin e Yang, e outros clichês do caralho. Este filme pega esta questão e a eleva ao esquema macro das consequências através da introspecção pessoal do micro. Internamente os caras vivem uma putaria, mas necessitam da mesma para sobreviverem. Por isso De Niro não consegue escapar e Pacino tem sua vida pessoal estraçalhada. Não há vitória. Há ação e reação num círculo vicioso e viciante. Filmão.

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