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Ford vs Ferrari

(Ford vs Ferrari, 2019)
7,3
Média
171 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Homens vs instituições

7,5

Homens nada mais são do que matéria para as instituições. No início de Ford vs Ferrari, Henry Ford II desliga os motores da própria fábrica sem avisar seus funcionários, deliberadamente. Todos param e o olham, à espera da "próxima ordem", e ele ordena na direção do que é dele, aqueles seres humanos. Homens-máquinas, utilizados quando há necessidade, e quando não há mais, descarta-se. E passamos à próxima ferramenta ou homem, o anterior já devidamente apagado. É em busca de mostrar o oposto a essa construção de relação que parte o longa de James Mangold buscar as relações em um ambiente que despreza as mesmas. 

O material humano que as instituições descartam encontra refúgio de resistência na relação à moda antiga entre Ken Miles e Carroll Shelby. Duas personalidades conflitantes, o segundo político e o primeiro impulsivamente rebelde, mesmo sabendo que não tem mais idade para tal. O tempo bate à porta dos dois cobrando resultados, e eles se unem para complementar o que falta, um no outro. Transformam-se então, dos conflitos constantes até perceberem que juntos farão diferença. E passarem, vejam a ironia, de homens a máquinas. Mas por escolha própria.

A própria Ford descrita na narrativa é também ela parte de uma engrenagem antiga e massacrante, que apenas reproduz o tratamento arcaico de desumanizar tudo que passa por seu caminho. Sem propor "passar pano" em instituição de qualquer ordem (nem aqui nem pelo filme), mas o ato é de equalizar todos os elementos do filme dentro de um sistema de repetição, ainda que o poder dominante aqui venha desse lugar, que exerce sobre os seres uma dominância cruel. Aos poucos, vamos observando uma insurgência contra essa representação estabelecida.

O relevo que o filme desenha sobre os dois protagonistas privilegia Miles, que tem um universo familiar que acompanhamos de perto, enquanto Shelby é um homem conectado exclusivamente ao trabalho. O que falta de proximidade e humanidade em um, sobra no outro... e, ao mesmo tempo em que isso seria e é geralmente um defeito, o filme elabora também essa questão a ponto de conectar os personagens, porque um tem claramente o que falta ao outro e é nisso também que floresce inconscientemente essa relação, com o personagem explosivo fornecendo o afeto que falta na vida do tranquilo, nas entrelinhas. O filme é tão fascinado por seus personagens que em determinado momento ficamos na ânsia de saber mais sobre a contrição daquele carro, que também é trama do filme, mas o macro perde espaço descaradamente para o micro. 

Matt Damon e Christian Bale são, também eles, dois atores muito diferentes entre si e que acabam fornecendo esses dados ao filme, a respeito das ausências e defeitos de cada um. Se Damon nunca mostra seus verdadeiros demônios internos, cabe a Bale expor toda a explosão de Ken, um homem repleto de picardias irônicas, tiradas naturalmente sarcásticas, que dão ao ator uma oportunidade única de ofuscar tudo a sua volta. Em papel menor como o dono da Ford, Tracy Letts tem nas suas mãos uma das mais engraçadas cenas do ano, que é desconstruída até revelar o interior daquele homem no pedestal.

Contando com uma sequência inacreditavelmente longa acompanhando as 24 h de Les Mans, que é das mais tradicionais corridas de automóvel do mundo, Ford vs Ferrari fala o tempo todo sobre seu universo de maneira muito auto centrada, mas que resvala nas pessoas que movem aquele universo sempre, e é exatamente sobre isso que o filme é. É como se James Mangold mostrasse a diminuição do Homem pela Instituição, e também isso significasse fazer o oposto com seu roteiro e direção; aproximar ao máximo das relações estabelecidas pelos personagens para fazer nascer daí a empatia por aquele universo, partindo do humano e voltando sempre ao humano.

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