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Críticas

Cineplayers

Da ilusão ao horror: a engrenagem cíclica do acaso.

8,0

Um forasteiro chega a uma cidadezinha pacífica à procura de um teto para deixar seu cavalo. Ao encontrar um pequeno estábulo, saca da cintura aquelas que agora são suas novas armas: moedas. Ele se atrapalha, derruba algumas no chão, mas consegue por fim, constrangido, entregar uma ao dono do lugar. 50 anos depois, um oficial do exército americano empurra um carrinho de compras entre corredores de um supermercado. A cena é bizarra, fora de contexto. Ele pára, corre os olhos pelas prateleiras, e se descobre de repente sozinho, indefeso diante de ameaçadoras caixas de cereal com leite condensado. Bem no centro deste intervalo, um ex-combatente volta à sua cidade natal após um longo período no Vietnã. Todos os seus amigos preparam uma festa de boas-vindas, mas ele pede ao taxista para seguir em frente. Chega à casa que não via há anos como se tivesse chegado de um dia de trabalho. Se senta na cama, tira os sapatos e, contorcendo-se num inexplicável desconforto, contempla o vazio escuro do seu quarto.

O que une O Homem do Oeste (The Man of the West, 1958), Guerra ao Terror (The Hurt Locker, 2008) e O Franco Atirador (The Deer Hunter, 1978) é, se não a mesma linha mestra do cinema clássico americano, um dos seus temas mais recorrentes: o homem e a perda do seu lugar no mundo. Seja no velho oeste, no deserto árabe ou nas montanhas da Costa do Pacífico, o indivíduo é sempre subjugado pela vastidão do meio onde se insere, captado por sua vez com uma amplitude que reduz os corpos que o povoam a detalhes ocasionais, de uma consistência frágil, perecível; de uma relevância passageira. Quando Michael (Robert De Niro) retorna à cidade onde passou os melhores anos de sua vida, sente como se não estivesse no lugar certo. É sem dúvida parecido, sobretudo em uma passada de olhos, mas a textura dos objetos, a luz do dia refratada na atmosfera e o cheiro do ar ainda frio pela manhã revelam a farsa, uma imitação quase perfeita da cidade que um dia conheceu à exceção de uma única peça fora do lugar: ele mesmo.

O interesse de Cimino — diferente do de Bigelow, que prefere a guerra enquanto compulsão, e de Mann, que usa esse deslocamento como propulsor para seu julgamento final — é se ater a essa metamorfose com dura e excruciante disciplina. O Franco Atirador é dividido com diametralidade calculada em três atos definidos para deixarem por demais transparente o que Cimino julga ser preciso desvelar com seu filme: o espírito setentista americano aleijado pela guerra e esse fatalismo inerente, imprevisível, contra o qual não há defesa.

A primeira hora inteira é dedicada a retratar o meio de vida daquelas pessoas, imersas numa tranquilidade quase frugal. As risadas na saída do trabalho, a cerveja no fim do dia, correr rua abaixo pelado na festa de casamento do melhor amigo — cenas de uma realidade que já nasce nostálgica (e por isso mesmo, condenada). Nesse contexto, a noção de morte que existe para Michael e seus amigos é tão distante e ingênua quanto uma brincadeirinha irresponsável com o carro, ou uma caçada de fim de semana. E há beleza nesse ato de matar, que se o grupo de amigos só conhece como esporte, Michael conduz como a um ritual.

Segurar a arma na mão e ser capaz de detruir algo que se criou espontaneamente, de perturbar a ordem intocável da natureza, é o que atrai e o que ilude Michael. Uma trucagem de controle. Cimino trata, em cena, de contradizer esta impressão e revelar o mecanismo ao absorver panoramas inteiros para dentro de sua lente, filmando o processo da caça não como uma ação artifical, mas como algo belo e orgânico, registrando a movimentação do homem e seu rifle (agora extensão de seu corpo) como um mero elemento compondo o organismo da paisagem, e portanto, sob a perspectiva adequada, um objeto a mais que se enreda na cadência natural das coisas. Envolto, não intervindo. Os planos, que começam amplos e longitudinais como se tentassem abraçar de uma só vez a lassidão una da montanha, vão se fechando à medida que o predador encurrala sua vítima. O tiro é seguido de um close que decodifica para o espectador o prazer inominável de Michael, uma sensação que, a partir dali, estaria perdida para sempre.

Cimino trata dessa transição com uma dor tateável. É assim à noite, no bar, enquanto um deles toca ao piano e todos são paralisados por um último momento de beleza, velando o modo de vida que conhecem e a si próprios, enterrados para sempre nesse pequeno espaço de tempo antes de terem seus espíritos estilhaçados pelo tiro que falhou na roleta russa, como o disparo simbólico de Elem Klimov em Vá e Veja (Idi i smotri, 1985), gatilho puxado pelo próprio Cimino em um corte que é um rebentar de barbante, um rapto; que extirpa os personagens de suas vidas e os joga na selva como quem é jogado de um veículo em movimento.

O efeito que Cimino pretende é o do choque; do contraste total de ritmo, de montagem, de narrativa. A câmera, que antes movimentava-se com uma leveza quase soporífera, agora agita-se, espreme-se entre estranhos, enfia-se em frestas e espia a ação pelos espaços que consegue arranjar. Os ângulos são errados, os planos inadvertidamente obstruídos. O efeito da queda na selva é o atordoar de uma bomba que explode e de uma bala que passa rente aos ouvidos. Mal sabemos onde estamos, o que está acontecendo, quem está sendo morto e quem está matando. Quando a ação volta a um ritmo mais ou menos discernível, já estamos presos em uma jaula aguardando o chamado da roleta, tribunal do acaso, o mais maligno e inapelável dos deuses. É a descoberta da impotência absoluta e da submissão ao fatalismo da vida que dita este rito de passagem para Michael, Nick (o monstro Christopher Walken) e Steven (John Savage), demonstrando com dolorosa clareza que a ilusão do infinito, aquela própria da perspectiva juvenil, havia chegado ao fim, e que nada nunca mais seria como antes.

Daí aquele deslocamento lacunar no retorno para casa, apenas porque o retorno para casa já não é possível. A noção de “lar” (e mesmo de “retorno” a qualquer lugar que seja) perde sentido, e o amor, de certa forma também um lugar para o qual se retorna, deixa de existir. Michael não consegue se aproximar de Linda nem ela dele sem se aproximar também do fantasma da vida antes da guerra, da memória de Nick e Steven, e, acima de tudo, da memória aterradora deles mesmos, pessoas diferentes, estranhos um ao outro. Se Linda o abraça por necessidade, Michael a abraça de volta por pena, e esse pretendido amor, o mais puro e espontâneo dos sentimentos (ou mesmo algum carinho, genuíno, que não baseado em qualquer elemento ligado à guerra ou a Nick), já não encontra terreno para vingar.

A frase final de Nick, “one shot”, mostrando lembrar do que disse Michael a respeito da cerimônia da caça, lança sobre aquele último tiro um fragmento de clarividência que parece acender em círios todos os minutos que se estendem até aquele momento. Se Nick lembra da vida antes da guerra e se reconhece o rosto à sua frente, então a loucura é uma farsa, e a decisão de largar-se à sorte é limpa e consciente. Nick não morre porque perde a cabeça diante dos horrores da guerra, mas pela lucidez cristalina que a guerra lhe concedeu. Neste caso a escolha é o privilégio derradeiro, e a morte, quase uma redundância.

Em solo americano, o pós-Vietnã é apenas uma semi-vida, e o mundo como costumava ser surge feito um sonho do qual se esquece ao acordar. Assim como Pat Garrett sabe que a morte de Billy the Kid é por extensão a sua (Pat Garrett & Billy the Kid [idem, 1973]), como Eastwood que se despede e se retira solenemente das telas em Gran Torino (idem, 2008), ou como o triste discurso de Tommy Lee Jones a respeito do sonho com seu pai em Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country for Old Men, 2007) (já não por acaso tudo sempre volta ao western e a essa sua estranha ligação com a morte), Michael compreende no momento da extinção que a cidade para a qual voltará é agora e para sempre uma cidade fantasma.

É essa perda de identidade e a duplicidade do tiro de Nick que selam também o destino de Michael. É por essa ligação imanente entre os dois, partes indissociáveis de uma só concepção de vida, que ele retorna a Saigon para buscá-lo. Há no resgate uma última chance para recuperar o que havia se perdido, e há nesse disparo um nexo apocalíptico, um impacto que sentencia também Michael à morte, como a bala no espelho ao final de Pat Garrett. Em ambos é ao sorteio fadário que cabem todas as decisões. Por isso o sorriso aberto no rosto de Nick. Ao segurar a arma e apontá-la para a própria cabeça, ele toma também nas mãos como um artefato raro o controle sobre a vida; quebrando enfim o encanto, derrotando a dinâmica viciosa do próprio jogo, até então absoluto e invulnerável.

É do horror diante da falta de autonomia sobre a vida, e de o único controle disponível ser talvez o da hora da própria morte, que Cimino trata em O Franco Atirador. Percebamos ou não, é tão pouco a esta lógica que a vida obedece: da randomização macabra da roleta russa.

Comentários (6)

Alan Nina | sábado, 26 de Janeiro de 2013 - 12:51

Belíssimo texto, mas só repetiu o filme com outras palavras (belas, repito). Nem parece uma crítica!

Patrick Corrêa | terça-feira, 16 de Abril de 2013 - 16:16

Texto maravilhoso e bem escrito.

Renata Correia Nunes | sexta-feira, 03 de Maio de 2013 - 17:21

Belíssimo texto, faz jus a esse belíssimo filme! Apesar de eu não concordar com o autor no que tange ao psicológico e ao motivo da morte do Nick, todo o resto eu achei muito pertinente. Parabéns!

Cimino foi extremamente feliz ao retratar os efeitos da guerras como poucos cineastas foram e fez desse filme muito mais do que "apenas mais um filme sobre o Vietnam". E eu também faço minhas as palavras do autor do texto quando ele chama o Christopher Walken de monstro... essa foi uma das melhores atuações que eu já vi. E não foram poucas, e isso não é pouco. Esse filme pra mim é 10 de 10.

Cristian Oliveira Bruno | terça-feira, 26 de Novembro de 2013 - 16:15

Um dos melhores filmes que já vi. De Niro e Walken (ganhador do Oscar) impressionam. Sobre o texto, é uma análise, não uma cítica ao meu ver. Muito boa por sinal.

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