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Críticas

Cineplayers

Um retrato básico de uma realidade absurda.

5,0
Fyre é um filme surpreendente, para dizer o mínimo. Menos pela forma como é retratado do que o assunto retratado, é verdade. Em 2017, ocorreu o Fyre Festival, um evento para promover o aplicativo de celular Fyre, idealizado como um “Uber artístico”, ou seja, agendar eventos pelo celular. Seu idealizador, Billy McFarland, já vinha do sucesso do Magnises, um cartão pré-pago feito de metal e cujos usuários eram convidados pela companhia. Um festival de música de luxo divulgado por modelos e socialites como Kendall Jenner e tendo como co-fundador o famoso rapper Ja Rule prometia um evento no horizonte que diziam ameaçar os já tradicionais Coachella e Burning Man. Tinha tudo para ser um sucesso, certo?

Errado. Para os que chegaram nas Bahamas das Bahamas após depositar vultuosas quantias na casa de dezenas ou centenas de milhares de dólares para alugar bangalôs na ilha que pertenceu ao megatraficante Pablo Escobar, comendo sushi enquanto mergulhavam no mar ou frequentavam os shows de Major Lazer e Blink-182, entre outros, o que encontraram foram uma pequena parte de outra ilha bahamense, a Grande Exuma, com tendas para desabrigados em número insuficiente para o tanto que veio, bagagens misturadas, sanduíches simples, cancelamento de artistas e palcos devastados pela tempestade. 

A suspensão do festival ocorrida após os frequentadores chegarem à ilha, bem como o não pagamento do salário dos trabalhadores locais não demorou para descambar em depredação, momentos de tensão e processos milionários contra Ja Rule e McFarland, sendo que o último acabou sendo preso por fraude. Como escreveu o usuário do Letterboxd Mike Torchic, praticamente um “O Senhor das Moscas com Iphones”.

O grande acerto de Chris Smith em sua segunda parceria com a Netflix após Jim e Andy, documentário onde Jim Carrey detalhou como foi viver Andy Kaufman em O Mundo de Andy (1999), é de captar o tom de algum dos envolvidos e nunca tratar o desastre do Fyre Festival como uma surpresa, mas sim como um acidente esperando para acontecer. E esse acidente previsto pela falta de profissionalismo, pelo auto deslumbramento regado a chavões empreendedores, com o conceito de produto recebendo mais atenção que o produto em si (com um comercial realmente impressionante) tem um nome: Billy McFarland.

O trambiqueiro é o tipo de figura maior que a vida que parece não conhecer limites, aparentando sair de um roteiro dos irmãos Coen como Fargo - Uma Comédia de Erros, O Amor Custa Caro ou Queime Depois de Ler. Completamente desconectado da realidade, McFarland frequenta a alta roda se beneficiando de fraudes milionárias (o próprio Magnesis apresentava várias reclamações por não conseguir entregar a exclusividade que prometia com sua mensalidade caríssima). 

Com investidores elogiando seu visionarismo e trabalhadores criticando sua absoluta falta de comunicação e sua incapacidade de ouvir negativas e a recusa até o último momento em acreditar que o Fyre seria um fracasso de proporções gigantescas, é inacreditável em um primeiro momento o quanto Billy é completamente elitista e desconectado da realidade. Um personagem que tinha que ser retratado através de documentários, pois em uma ficção poucos acreditariam que a persona que encarna toda a caricatura da estética “hipster”, da cultura dos “empreendedores de boutique” impulsionados pelos discursos de auto-ajuda financeira dos “coachs” seria verdade.

A impressão que dá é que Smith não teve muito trabalho de impulsionar o absurdo que é retratado: boa parte dos seus entrevistados são pessoas da alta roda que comentam aborrecidos o dinheiro que investiram enquanto os poucos funcionários, como uma dona de restaurante, vai às lágrimas ao contar que teve que pagar trabalhadores que contou com sua poupança que concentrava menos dinheiro que o aluguel de algumas casas do Fyre Festival. Outro frequentador do Festival conta com naturalidade que a sua primeira reação ao descobrir que foi enganado foi depredar outras barracas, chegando a detalhar que seu grupo urinou em colchões nas barracas para demonstrar a insatisfação. E há um momento em que um dos organizadores detalha como pretendia conseguir carregamentos de água Evian que contar não faz jus a ver o depoimento.

Aliás, “inacreditável” é um termo que faz jus ao documentário Fyre. Muitas vezes fica difícil não duvidar dos depoimentos, como se estivéssemos vendo os mocumentários Isso é Spinal Tap, Zelig ou Recife Frio. Um retrato tão hilário quanto revoltante sobre as piores facetas do capitalismo, do quanto privilegiados por vultuosas somas de dinheiro conseguem brincar com o dinheiro dos outros sem realmente sofrer consequências (ao final do filme, quando tudo já havia dado errado com o Fyre Festival, Billy foi denunciado por vender ingressos falsos de festivais de música eletrônica para a lista de mailing do evento falido), um indício que nem tudo em O Lobo de Wall Street era piração de Scorsese e DiCaprio, que as caricaturas mais grotescas às vezes podem ser eufemismo… Você escolhe. De qualquer forma, Fyre é um testemunho vivo de alienação completa e de absoluta falta de noção na Era da Informação e das redes sociais. Tipo de obra que, se não demonstra méritos excepcionais enquanto cinema (a adoção da tática de talking head deixa tudo parecendo uma grande reportagem), ainda assim é o tipo de momento da história humana tão absurdo que só dá para acreditar vendo.

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