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Gangues de Nova York

(Gangs of New York, 2002)
7,3
Média
829 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

O tal Caldeirão infernal visto da, e pela, bagaceira

10,0

A formação de uma nação moderna com todas as suas mistificações civilizatórias baseadas no sangue pútrido é metamorfoseada em cinema. E num cinema escroto.

Martin Scorsese faz aqui talvez seu projeto mais pessoal, visto que buscava criar este monstro desde os anos 70, quando leu “As Gangues de Nova York - Uma História Informal do Submundo de Nova York” (The Gangs of New York: An Informal History of the Underworld, 1927) de Herbert Asbury. A trajetória do seu cinema e de sua vivência numa Nova York suburbana e virulenta deram resultado neste filme. Aqui, porém, Scorsese aprofunda sua visão de suburbanidade e vai em busca do caldeirão no qual fora construída esta cidade. E é neste espectro que reside a violência histórica de seu filme. É a história vista de baixo. Sagaz corrente historiográfica de base inglesa nos quais alguns dos seus maiores monstros seriam Edward Palmer Thompson (o homem que alcunhou o termo e tornou o próprio um importante procedimento históriográfico), Peter Burke, Christopher Hill e Jim Sharpe. Corrente esta que tinha como epistemologia um olhar tangenciado através de um estudo sobre os fodidos e onde os mesmos estariam como agentes da história.

Como diria Jim Sharpe – no artigo “A História vista de Baixo”, publicado no livro “A Escrita da História”, doutro artífice da corrente, o Peter Burke –  sobre o próprio E. P. Thompson, ele “não se limitou apenas a identificar o problema geral da reconstrução da experiência de um grupo de pessoas 'comuns'. Percebeu também a necessidade de tentar compreender o povo no passado, tão distante no tempo, quanto o historiador moderno é capaz, à luz de sua própria experiência e de suas próprias reações a essa experiência.” A intenção era buscar um entendimento do espectro histórico através destas plebes e como e por que elas serviam como agentes.

Scorsese usa isto em similitude. Além somente das hierarquias políticas em plena guerra civil, o foco aqui é o forjar de uma cidade sob o sangue de seus conterrâneos, sejam eles negros, chinas, brancos ou imigrantes irlandeses. Da prostituta ao político infame em vozes diversas numa grande bagaceira. Um monstrão voraz sendo alimentado e essa situação mostrada sob a perspectiva destas figuras tão subalternizadas e esquecidas. Não mais. Agora possuíam o espaço necessário para que seus ensejos violentos e gritaria virulentas fossem pautados pela história. E como mereciam isto. Se a intenção dos estudos da corrente historiográfica citada eram de propor uma compreensão de uma parcela esquecida da sociedade diante dos acontecimentos, Scorsese busca também dar uma projeção a estas figuras. Através da narrativa. De antagonistas, da trama principal, da convulsão do caldeirão novaiorquino, e do perambular destas criaturas até ali buscando um local para sobreviverem tal qual na história também querem uma expiação. Nisso o diretor acerta tenazmente.

A caracterização animalesca da xenofobia grossamente justificada na existência de seus contraditórios. Uma cidade construída por todos. A natureza instintiva do humano somada à construção histórica decisiva diante o caos. Em meio a uma guerra Civil violenta, Guerra de Secessão, são mostradas as gangues urbanas que viriam a formar aquela cidade. Uma cidade feita por fodidos, como qualquer outra grande metrópole. Os “de baixo” na pista. Isto é martelado durante toda a duração. Em conflito com a história tradicional ocidental que em tantos países deram primazia histórica às lideranças políticas e empreendedores outros esquecendo-se da força do povão que levantara as cidades com braços e pernas a cansar, e que as transformariam  socio-culturalmente. Não é somente um caso de inclusão nos eventos, mas de transformação antes, durante e depois dos mesmos. Seres ativos na história e não um apanhado de meros partícipes sem voz.

A história de vingança e redenção servem de fio condutor prático, usual e coerente com a predisposição histórica americana dentro de um mosaico criacionista urbano e popular. Vindo de baixo. Onde a figura de Amsterdam (Leonardo DiCaprio) tem um percurso de vingança e redescoberta de universo no qual vamos a reboque conhecer uma esculhambação sociocultural e política pungente e doentia. Uma confusão imagética - na exposição abrupta dos mais variados tipos sociais - e sonora - na confabulação e conurbação da música diegética e extra-diegética - como usufrutos de linguagem onde se encara o caos duma ebulição urbana. E é, à formação desta urbe pela qual se debruça Scorsese. A conduta da trama principal serve de linha dramatúrgica narrativa ao universo proposto. A putaria que vale aqui. A condição destas figuras existirem e atuarem depende, obviamente, do universo proposto, e por mais caricaturas e overactings que possam perambular pela fita, estes fazem parte de uma porralouquice pulsante e possível. O diretor entende isso e usa o exagero desta premissa em prol da marretada ideológica e prática que possibilitou o vômito destrutivo de uma nova York em formação e demoniacamente sedenta.

Falando de Diabo, a religiosidade também é verificada como mote moral pelos conflitantes desde o início do longa e eloquentemente usada pela sede da sangria, como tanto já fora. Já que sabemos que Deus(es) é um chapa figura cativa nas justificativas humanas pra violência pregressa, seja ela física ou ideológica. O conflito religioso entre o Açougueiro e o Pastor Vallon (eximiamente bem interpretado por Liam Neeson, justificando a eterna lembrança de seu detrator diante da vitória) propõe bem esta prerrogativa onde o comando papal da Igreja católica defendido por ele é rechaçado pelo açougueiro protestante, sempre o Deus querido na moral sangrenta. Os Irlandeses já vinham de um conflito religioso em seu país e outro os esperava na sua chegada aos EUA. E ambos juram amores a Deus e pedem a ele que delicadamente abençoe seus machados e cutelos pros desmembramentos a seguir.

Um pequeno adendo técnico cito. Scorsese com sua perícia compõe um plano-sequência genial que decodifica uma linha temporal específica sobre a guerra na participação dos irlandeses. A chegada ao porto nova-iorquino dos imigrantes, dali para guerra e em seguida para o caixão dos soldados. A questão de classes aqui é ressaltada no que tange ao recrutamento compulsório imposto a população pobre diante da taxa na qual os ricos pagam para ficar fora do conflito. Desde o porto os imigrantes já são convocados a defender o país que supostamente lhes acolhe. Uma conjuntura hiperbólica teatralizada e intrigante sobre a necessidade e o usufruto dos fodidos nova-iorquinos, ou daqueles que quisessem ser. Um resumo da relação do seu filme para com a história vista de baixo. Imigrantes montando a história ativamente e mesmo assim sendo sacrificados para tal, e toda a relação doutros excluídos com estes. Foda.

Ordem e Caos. O marco civilizatório é tratado como necessidade xenófoba nativista pelos ultranacionalistas (e sim, fazem parte da massa) e como sobrevivência inquestionável pelos imigrantes, o que nos traz a uma estrutura de conflito imponderável que seria tão somente resolvida pelo estado quando a balburdia radicalizara-se por sobre as elites, quando os fodidos não aguentam mais os desígnios da pobreza exploratória e a obrigação de guerra. Luta de classes. Porradaria. Todos contra todos. A violência como expiação, resistência e modus operandi deste suposto marco civilizatório imposto. A dialética aqui se faz presente. A disposição política na qual um paradoxo é exposto e temporariamente desfeito por uma conjuntura de poder, interessante à obra, é a relação entre o ultraconservador nacionalista e racista William “Bill O Açougueiro” Cutting, Daniel Day-Lewis em estupenda personificação flagrante e brutal do nacionalista urbano extremista, e o democrata populista, oportunista e altamente pilantroso William Tweed, no qual Jim Broadbent diverte-se com toda a canalhice de um suposto democrata moderno ao qual só interessa o voto e que visa mostrar ao Açougueiro que ele está ultrapassado e que o futuro depende mais das alianças políticas em amálgamas escusas do que a violência de comando pelo medo.

A política necessita das bases populares que instituem a violência, mas faz do usufruto da contrapropaganda com a elite para deslegitimar esta mesma violência. O vai-e-vem das alianças depende incomensuravelmente da manutenção de uma imagem democrática acima de tudo que independe da práxis da mesma em relação voto, e sim da contagem escusa dos mesmos. Pobres úteis na pilantragem do voto. Política em seus usos de valores existentes apenas como uma puta farsa em prol de resultados próprios. Uma permanência histórica aos moldes atuais pelo globo da ala democrática.

Por fim há aqui um inferno de escrotos sacrificados formando uma cidade. Não há glória. Não há vencedores. A anonimização feraz deste povo, que construíra a cidade, é ressaltada no plano final. Agora não mais. A história tradicional continua e o povão nas entocas assim fica. A oportunidade encontrada é dar espaço a estes lascados. Estes agentes construtores que relegados às raias miúdas de suas existências, encontram espaço através dos olhares de quem busca o âmago da construção estomacal e social de uma futura grande metrópole. Facas, fumaça, cutelos, carne, sangue, suor, tripas e sujeira. De baixo. E tome-lhe chiba.

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