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Críticas

Cineplayers

A morte na vida, a vida na morte.

8,5

Quando do falecimento do brasileiro Paulo Cesar Saraceni, houve a oportunidade de lembrar a dívida, não apenas dele, mas de todos os diretores verdadeiramente modernos, para com Roberto Rossellini, visto que há um consenso de que é impossível fazer cinema moderno sem antes conhecer e passar por Rossellini. Será o que falta nas gerações de cineastas ditos autorais, não muito consistentes, e tão preocupados com tendências passageiras e influências contemporâneas, muitas das quais saindo de moda e sendo esquecidas em cinco ou dez anos?  O que vale é ter em Jean-Claude Brisseau outro exemplo de cineasta rosselliniano, com a sua pedagogia do olhar e do afeto, mais preocupado em apreender sobre o mundo e os sentimentos de uma maneira honesta. Um diretor católico que trata a fundo a colisão entre a eterna luta de classes e os sentimentos cristãos, com personagens que descem até as profundezas, contemplam o abismo, com direito ao regresso para o troco final, por mais destruídos que possam se encontrar.

Levando em conta os cinco filmes que dirigiu entre 2000 e 2012, culminando em A Garota de Lugar Nenhum (La Fille de Nulle Part, 2012), vencedor do Festival de Locarno no ano passado (num júri presidido pelo tailandês Apichatpong Weerasethakul), não seria exagero considerar Jean-Claude Brisseau o maior cineasta do século XXI. Se a Nouvelle Vague sobrevive nesse novo século é pelas suas mãos e lentes, que conseguem transformar o cinema em filosofia.

Do que tratam os filmes de Brisseau? Da aventura. Do amor. Da revolta. Da fuga. Como em outras de suas obras, La Fille de Nulle Part é a história de uma mão acolhendo generosamente a outra, ao mesmo tempo em que alguém é salvo da lama para ser jogado aos leões. A obra do diretor francês geralmente versa sobre as relações de poder. Com o sexo como instrumento que move os personagens dentro das disputas e manipulações às quais se entregam. Ninguém filma o sexo com o mesmo talento que Brisseau; enquanto os demais diretores quando lidam de temas mais eróticos quase sempre ficam na superficialidade, Brisseau faz filmes atordoantes de tão belos.

Se Anjos Exterminadores (Les Anges Exterminateurs, 2006) era o negativo de Coisas Secretas (Choses secrètes, 2002), com um grupo de mulheres lutando por uma forma de ascese profissional e pessoal, porém sendo vitimas de protagonistas masculinos que detinham o poder, abusando das circunstâncias para explorarem as garotas, e logo em seguida livrarem-se delas, La Fille de Nulle Part é uma extensão de alguns pontos de partidas e de chegadas do anterior Erótica Aventura (À l'aventure, 2009). São homens e mulheres buscando entre si uma utópica convivência sem dramas e sem conflitos, e a frequente e desesperada busca dos personagens pela descoberta de si mesmos, na possibilidade de serem livres experimentando a quebra de entraves nesses convívios, e a comprovação de que a liberdade absoluta é impossível de se obter, mas que vale a pena vivenciá-la por algum momento ainda que se tenha que continuar com o seu animal interior domesticado dentro de uma jaula que o reprime e aprisiona. Ou entregando-se por fim a um inevitável sacrifício, como o do professor Michel Deviliers (interpretado pelo próprio Brisseau), que resolve abrir espaço em seu encastelamento para abrigar e proteger como pupila a jovem de lugar nenhum do título e anjo fracassado, Dora (Virginie Legeaya), a quem propõe entregar os seus despojos materiais (o espólio do seu patrimônio) − os quais ela como um espírito livre recusa −, e a co-autoria de sua obra intelectual (o ensaio sobre ilusões humanas que há anos vem escrevendo), pela influência que a moça o faz sofrer, o que inclui a própria destruição ao término. A morte na vida, a vida na morte.

São legítimos filmes feministas; difícil entender as infundadas acusações de machismo que pesa quanto ao diretor. Em Les Anges Exterminateurs, o mais maldito de seus filmes, existe uma discussão moral, num ajuste de contas de Brisseau consigo mesmo, com sua consciência.  Mas o que sempre impera é a sede de liberdade da mulher se sobrepondo a curiosidade e desejo de conhecimento masculino. Em À l'aventure, era o psiquiatra que convence o trio de garotas a servirem de cobaias para com a prática da hipnose se aproximar do segredo do êxtase feminino (há fortes presenças de uma espiritualidade existente nesses dois últimos filmes que os convertem em experiências quase místicas, sempre uma questão de ascese). Além do homem no banco nas conversas de uma das garotas na praça, com um Étienne Chicot que em cada uma de suas aparições parece estar construindo um filme à parte somente para ele. O velho professor interpretado por Brisseau no filme novo parece retomar muito do homem do banco no anterior, mas aqui jogado no centro do furacão.

Como diretor, Brisseau faz o que centenas de cineastas tentaram, mas poucos conseguem: tratar o sexo com seriedade e filosofia. Em À l'aventure já havia muito de uma investigação pelas profundezas interiores que se dava mais pelo diálogo do que pelas sequências com belos corpos femininos se masturbando ou em conluio uns com os outros nas cenas de lesbianismo ou com outros homens, ressaltando que nem há tanto sexo nesses seus dois últimos trabalhos. Como de costume em Brisseau o que existe é a mise en scéne pura na maneira como filma objetos, corpos e paisagens, não só nas cenas eróticas, mas sobretudo na limpidez e precisão com que cada plano é articulado e no olhar com que o espaço cênico serve de teatro para encontros com uma carga de uma pulsão íntima e clandestina quase sagrada, dentro ou fora dos quartos e refúgios enclausurados. Reclamar do sexo na filmografia de Brisseau seria o mesmo que diminuir os clássicos do terror italiano por suas sequências de sanguinolência. Num caso e no outro, é tudo uma questão de opção estética. E de saber ver. 

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