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Críticas

Cineplayers

Fincher e seu estudo da imagem.

7,5

Em um dos muitos flashbacks que permeiam a primeira metade de Garota Exemplar, há um momento em que é revelado ao espectador o primeiro beijo entre Nick Dunne (Ben Affleck) e Amy (Rosamund Pike). Eles estão cobertos por uma névoa que aos poucos vai preenchendo o enquadramento e moldando o rosto da mulher, fazendo-a parecer um anjo e, conseqüentemente, vertendo aquele cenário urbano noturno, durante alguns segundos, em um aparente sonho. Mas ao mesmo tempo há uma estranheza na atmosfera que faz daquela cena supostamente romântica em algo ameaçador. Não somente porque sabemos, no tempo real, que Amy está desaparecida e talvez morta, mas principalmente porque em Garota Exemplar a imagem parece nunca condizer com a realidade daqueles personagens.

David Fincher é um diretor muitas vezes definido como “frio” – palavra usada para destacar seu trabalho, digamos, prático com as imagens. Muitos cineastas dessa mesma escola talvez sejam injustiçados ou sequer lembrados, pois essa suposta frieza às vezes é confundida com ausência de técnica, falta de um estilo visual próprio, enquanto outros mais barrocos e não tão talentosos são aclamados à toa. Claro que quem entende melhor de Fincher sabe que tudo isso é falatório, já que estamos lidando com um dos maiores perfeccionistas do atual cinema americano. Sua discrição o permite transitar completamente invisível em cada um de seus filmes, mas de forma incisiva, cuidando de cada detalhe cenográfico, desde a paleta de cores usadas em cada cena, passando pelos penteados e maquiagem do elenco, até o posicionamento exato e linguagem corporal dos atores. Cada objeto, cada posição da câmera, cada disposição de luzes, faz parte de um plano meticuloso bolado pelo diretor.

Garota Exemplar, embora esteja a uma boa distância dos filmes maiores de Fincher, talvez seja a mais evidente prova desse seu minucioso trabalho com a imagem, enquanto reafirma sua habilidade de se valer dos que há de mais comum nos filmes de gênero, ao mesmo tempo em que subverte essas constantes. Aqui ele brinca com o thriller, e ainda inclui na receia um inesperado toque de humor negro ao discutir o desgaste de uma relação a dois. Nesse ponto ele resgata suas antigas discussões sobre a natureza cruel, violenta e egoísta do homem moderno, assim como o trabalho da mídia em mitificar, endeusar, blasfemar e manipular. A diferença essencial de seus demais filmes está na forma como ele cria uma ruptura entre a imagem com a ação descrita e a ser encenada conforme pede o roteiro. Se antes havia uma maravilhosa fluência e sinergia entre personagens e a ação, agora os dois parecem não estar na mesma sintonia. Propositalmente, Fincher cria em Garota Exemplar um profundo estudo de imagem maquiado por um suposto estudo de personagens.

Isso faz de Ben Affleck e Rosamund Pike duas peças essenciais da obra, não apenas pelo fato óbvio de serem os protagonistas, mas porque são dissecados pela textura sobressalente que oferecem dentro das imagens. Enquanto os demais personagens cumprem funções burocráticas dentro da trama (a detetive durona, o advogado incansável, os pais desolados, os vizinhos desocupados, os jornalistas incansáveis), o casal principal não se adapta a esse universo, especialmente Pike. Amy é uma personagem que, ao contrário dos demais, é autossuficiente e transita independente pelo filme. Sua figura, a princípio, é uma incógnita. A esposa perfeita, garota dos sonhos, cujo desaparecimento causa comoção nacional, enquanto para o marido sua ausência parece motivo de alívio.

A partir da segunda metade, a consistência de Amy na história muda drasticamente e isso contraria toda a lógica criada até então. Presente ou ausente, sua imagem emana uma força que fascina a câmera de Fincher e, junto dela, o espectador. Desde sempre a enigmática figura feminina fascina grandes cineastas, como Fritz Lang (em Um Retrato de Mulher), Alfred Hitchcock (em Um Corpo que Cai), F.W. Murnau (em Fantasma), David Lynch (em A Estrada Perdida), e Manoel de Oliveira (em O Estranho Caso de Angélica). Aqui, ela atua como uma saliência na imagem, de modo que quando sorri, sabemos que Amy não está feliz, e quando chora, sabemos que não está triste, e enquanto todos os personagens se preocupam com respeito a seu paradeiro, o espectador só se preocupa em desvendar sua verdadeira natureza. Affleck, por conta disso, entra também saliente como o marido que pode ou não ter matado a esposa, que pode ou não amá-la, que pode ou não estar genuinamente preocupado com seu paradeiro. Não porque Fincher faz de Nick um personagem cheio de nuances, mas porque imageticamente Affleck é tão impenetrável quanto Pike. Assim, o espectador a toda hora é cutucado, lembrado de que está ali, e que é possivelmente o único que entende que o que está em cena não bate com o que está sendo dito. Isso faz da escalação dos dois uma manobra de mestre por parte de Fincher. Affleck por ser tão amado e ao mesmo tempo odiado quanto Nick, e Pike por sua beleza gélida, tão convidativa quanto misteriosa e intrigante. Ambos, independente de qualquer coisa, sustentam essa ruptura entre imagem e ação do filme apenas pelo simples fato de ser quem são e como são.

Por não haver um verdadeiro estudo de personagens, embora pareça haver, nada é capaz de surpreender o espectador a ponto de tornar a trama inverossímil aos nossos olhos. Esse sutil trabalho com as imagens feito por Fincher se revela então um poderoso comando narrativo, sustentando a trama que segue por caminhos cada vez mais rocambolescos sem cair no ridículo e mantendo o interesse até o fim. Aqui não é possível reconhecer de cara o Fincher sofisticado de Zodíaco, nem mesmo o Fincher mais quadrado de O Quarto do Pânico, mas sim o Fincher sacana, corajoso e sem medo de incomodar de Vidas em Jogo. Melhor dizendo, Garota Exemplar junta um pouco de tudo isso, e só pega o melhor de cada um desses filmes, com a vantagem de colocar em maior evidência seu cuidado quase paterno com suas preciosas imagens.

Comentários (26)

Luis Felipe | sexta-feira, 24 de Outubro de 2014 - 13:55

É muito melhor como suspense mesmo. [2]

Patrick Corrêa | sábado, 03 de Janeiro de 2015 - 21:54

Ótimo filme e ótimo texto, como sempre. Uma análise e tanto, Heitor!
Quanto a Affleck, ainda estou longe de vê-lo como tão ru ruim quanto berram por aí. Pike, por sua vez, está fantástica.

Vinícius Aranha | sábado, 03 de Janeiro de 2015 - 22:22

Olha o que dá ver o filme como suspense: http://olharimplicito.wordpress.com/2014/12/27/garota-exemplar-david-fincher-2014/

Anderson de Souza | terça-feira, 06 de Janeiro de 2015 - 19:27

Olha, texto excelente, viu? Quarto e quinto parágrafo perfeitos.
Gosto de como Fincher brinca conosco aqui. Ao mesmo tempo em que ele nos diz muito sobre os personagem, abarrotando o filme de narrações em off, ele sempre nos deixa da dúvida e na curiosidade sobre seus personagens.

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