Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Quando chamar de suspense sem suspense é um grande elogio.

7,0

Dario Argento chega aos 69 anos com o velho espírito sacana que sempre possuiu, porém também com uma consciência invejável a respeito do Cinema - de seu próprio, da mídia em si e especialmente da forma como manipulá-la, como retransformá-la para fugir do padrão fílmico clássico e quadradinho ao qual realmente nunca pertenceu. Este seu novo trabalho, Giallo - Reféns do Medo, é um filme que se constrói antes, durante e depois da projeção, uma espécie de monstro que em um primeiro momento te seduz, depois te instiga e sacia, e posteriormente te tortura através de um exercício de puro sadismo.

 

Giallo inicia há mais ou menos dois anos, quando Argento anunciou o filme e prometeu fazer dele um retorno ao clássico cinema fantástico italiano dos anos 70. A expectativa criada em fãs e admiradores não poderia ser outra que não a melhor possível, e os primeiros screens a surgirem na internet, junto do pôster estilizado e colorido com desenho de facas pingando sangue divulgado meses antes do lançamento do filme, pareciam apontar no mínimo para uma tentativa de filme-retrô argentiano, com seus jogos de luz elaborados, movimentos de câmera que fogem ao limite da compreensão humana e jatos de sangue à revelia.

 

É então que chegamos aos primeiros minutos de Giallo, onde a disforme narrativa caminha como um bêbado de pernas bambas, mostrando ações que derrubam todo e qualquer pré-conceito que havíamos construído sobre o filme: Argento filma os métodos de um assassino que simplesmente não mata, pelo menos não aos olhos da câmera. O maníaco é um homem surtado que seqüestra modelos para torturá-las em cativeiro, fotografá-las durante o sofrimento e em seguida utilizar as fotografias como fonte de inspiração para se masturbar enquanto chupa um bico de criança.

 

Quem conhece minimamente a filmografia de Argento reconhece logo de cara a referência a um de seus temas favoritos: os traumas de infância, que retornam não apenas como um elemento a ser estudado durante o filme, mas como base de discurso. É sob a iminência deste trauma que se estrutura todo o filme, e suas conseqüências não são representadas apenas pelas motivações das personagens, mas sim por toda e qualquer ação presente na tela - e, de forma ainda mais intensa, pela estrutura narrativa de Giallo em sua totalidade, pensada de maneira esquizofrênica, errática, porém misteriosa apenas para o seu personagem.

 

Sim, porque Giallo é um filme cuja trama se resolve para nós, espectadores, com meia-hora de duração, e dali em diante nos convida a ver e sentir as conseqüências deste trauma ao invés de desvendá-las, como normalmente o faria um filme de suspense. Argento abre mão do mistério entregando a resolução de toda a história em duas seqüências centrais,  a apresentação da feição do assassino e o flashback brilhantemente fotografado com o qual explicita as razões de ser deste personagem, e guarda para o espectador cadeira cativa em uma posição de puro voyeurismo sádico para acompanhar o sofrimento deste homem transtornado, cujo referido trauma deu origem a uma vida dupla.

 

É então que, durante uma hora inteira, veremos este homem caçar a ele mesmo, fugir dele mesmo e demonstrar o estado de sua mente atormentada através de atos de tortura e violência sob o corpo de modeletes histéricas que simplesmente não conseguem entender o que acontece, pois numa história habitual deveriam estar mortas, e não com os membros atados trancadas em um porão perdendo aos poucos os dedos e outras partes do corpo. Argento nos diverte ("kiss kiss no more" é uma das frases do ano), nos sacia com cenas perversas e sangrentas e ao final de tudo realmente consegue apresentar um filme diferenciado subvertendo todas as regras possíveis de um jeito que qualquer um apostaria ser um passo largo rumo ao fracasso: fazer um suspense sem suspense algum.

 

Por isso é que é perfeitamente compreensível encontrar tanta gente confusa ao final de Giallo, e é também o maior dos motivos que eu poderia citar aqui como prova de seu sucesso. É um filme que certamente será detestado por muitos, considerado sem graça, feio, bobo, chato e etc., e Argento tem consciência disto porque seu objetivo não é fazer um filme intelectualizado (não no sentido de inteligente), um suspense  recheado de cenas de susto histriônicas ou de surpresinhas metidas a enganadoras. E, neste caso, por propôr uma experiência que se opõe ao que o gênero em que se instala prega atualmente, Giallo certamente será mais um filme incompreendido de Dario Argento.

Comentários (0)

Faça login para comentar.