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Críticas

Cineplayers

Gloria pelo mundo.

7,5
Há duas semanas atrás o "fenômeno" já tinha se apresentado, o curioso caso do remake literal dirigido pelo autor original. Mas a mecanização estrutural presente em Vingança a Sangue Frio (releitura de O Cidadão do Ano) é uma ferramenta do cinema de gênero interpretado pela própria obra, retendo material humano em doses menores do que em painéis preocupados em radiografar o humano, como no cinema de Sebastian Lelio. Com apenas 3 longas no currículo, sua nova empreitada nada mais é do que uma versão falada em inglês de sua estreia, o melancólico Gloria; acrescentou-se um sobrenome ao título do novo filme, e talvez essa seja a mudança fundamental de um objeto para outro. Sim, os filmes em tudo se espelham, em resultados pouco práticos. Mas o elemento humano é a matéria-prima do chileno, e embora os caminhos percorridos por Paulina Garcia e Julianne Moore sejam quase decalcados, é do âmago de seu(s) universo(s) que se extrai a força para não apedrejar o novo longa, apenas desaprovar.

A partir dessa frustração com certa fatia do público, Lelio escolhe o caminho mais difícil e decide praticamente tornar a realizar a produção, com elenco novo e idioma novo. A partir daí a comparação é inevitável, e o que salva a experiência de assistir Gloria Bell são os aspectos que língua alguma pode influenciar: sua humanidade. Ainda que o conjunto de ações e reações dos personagens sejam de conhecimento prévio do espectador que assistiu ao original, seu desenvolvimento nunca é questionado por se tratar de um roteiro tridimensional que complexifica cada camada apresentada, cada personagem, até os que aparecem em apenas um bloco de cenas. O relevo de seus tipos e de suas pulsões é tratado com o máximo de naturalidade, que acabam gerando a identificação tão imediata. Mas perdura o questionamento sobre a necessidade dessa adaptação.

Gloria canta a caminho do trabalho, na volta do trabalho também. Canta enquanto lava sua lingerie. Canta nos bailes que frequenta porque adora dançar. E tudo que Gloria canta (um passeio musical que vai de Paul McCartney a Air Supply, passando por Bonnie Tyler e a nata da 'disco music') entrelaça sua história, como se Gloria estivesse cantando o roteiro do filme. E isso vai se desdobrando ora de maneira explícita, ora irônica, ora metafórica, traçando um painel sobre sua personalidade através do cancioneiro americano dos últimos 40 anos. Nada muito original, mas é um dado de construção que complementa a rica performance de Julianne Moore, uma atriz repleta de recursos se aventurando por uma personagem repleta de possibilidades. Gloria tem a sua rotina alterada mas não é escrava dos acontecimentos/novidades, ela molda seu entorno com qualidade, apesar da solidão crônica das grandes cidades.

Ao lado de Julianne, um ator como John Turturro se prova necessário hoje. O personagem é o que Turturro deseja que ele seja: sedutor e bonito a primeira vista, atrativos não necessariamente inerentes ao ator, e que vai perdendo todos os dados que montam essa alegoria conforme o roteiro revela sua verdadeira face, mais comum e até entristecida. Através do longa, percebemos o quanto Turturro faz falta e como sua presença foi relegada a um plano óbvio e estereotipado, que aqui cai por terra quando o ator cria unidade entre dois opostos de representação sem perder a essência da mesma. Todo o elenco repleto de rostos conhecidos (Michael Cera, Rita Wilson, Chris Mulkey, Sean Astin) tem suas funções muito bem defendidas e compõem o mosaico por onde Gloria passeia recheando de credibilidade a narrativa, dando suporte à sólida base construída por Julianne.

Ao concentrar seus esforços em recortar do banal sua elegância, sua vivacidade, e entregar essa investigação sobre emancipação emocional, Lelio reafirma não apenas os valores já apresentados anteriormente, mas a coragem de respingar na América individualista as apregoadas consequências desse individualismo tão positivado. Com uma espinha dorsal segurada tão fortemente por Julianne Moore, em performance admirável em seus extremos de luminosidade e opacidade, o diretor não termina por justificar a contento a base dessa refilmagem, a não ser pela eterna e propalada preguiça americana. Mas como os alicerces do que vem construindo em cinema até agora são a busca pela liberdade e pelo respeito, como esses valores deveriam ser perseguidos por qualquer outra obra independente de seus temas, o ato de reassistir os percalços de Gloria Bell é como reencontrar uma querida amiga, que se mudou para o alto do mapa mas continua sendo uma figura identificável demais a aportar nas telas, como tantas outras Glorias que conhecemos.

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