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Gran Torino

(Gran Torino, 2008)
8,2
Média
1042 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A obra-prima de Clint Eastwood, em que tanto personagem quanto autor passam por um rigoroso processo de auto-avaliação.

8,5

Parece brincadeira dizer que Gran Torino não é um projeto nascido da cabeça do próprio Clint Eastwood, que afirma ter mantido toda a estrutura do roteiro escrito pelo estreante Nick Schenk. A distribuição dos temas, a relação de Walt Kowalski com a comunidade em que vive e sua visão de valores e do mundo, a impressionante compreensão do modelo classicista de Cinema - do qual o diretor ainda é um dos poucos remanescentes -, tudo parece ter sido metodicamente arquitetado por ele como uma espécie de ponto de encontro de grande parte dos elementos que nestes mais de 40 anos de carreira fizeram parte de seu universo cinematográfico.

O filme tem início quando Kowalski, aposentado e veterano da Guerra da Coreia, perde a esposa e passa a viver sozinho em sua casa no subúrbio de uma cidade estadunidense, num bairro que com o passar dos anos se transformou em uma comunidade de imigrantes coreanos. Relembrando constantemente de seus traumas de guerra em virtude do contato direto com a etnia asiática, surge nele um feroz sentimento de racismo que passa a evidenciar seus valores tradicionalistas e patrióticos. Tudo se acentua quando um vizinho imigrante tenta roubar seu Gran Torino, carro ícone dos anos 70, o que faz com que ele comece a tentar ajudá-lo.

Há um turbilhão de temas sendo discutidos em pouco menos de duas horas de filme, num exemplar modelo de reconstituição de valores trabalhados pelo Cinema de clássicos diretores como John Ford e, especialmente, Samuel Fuller. Eastwood vai aos poucos desmembrando as influências de um e de outro como forma de encontrar um perfeito equilíbrio de seu próprio Cinema, assumindo em certos momentos um intenso caráter de acerto de contas consigo mesmo. A ideia de comunidade e de memórias de Ford são base para a construção do terreno que, à medida que vai apertando o cerco, se transforma em um campo de batalha fulleriano, especialmente pela tenuidade da relação entre as etnias – representadas por gangues e grupos fechados.

Mas Gran Torino é todo construído sobre um signo específico: o corpo de Clint Eastwood. Constamentemente filmado em closes estilizados e planos que salientam a passagem do tempo para Kowalski – e também para o ator, sem pudor algum -, o rosto de Clint traz em suas linhas uma sempre impressionante e avassaladora carga dramática. Por mais fortes que sejam as cenas de violência efetivamente distribuídas ao longo do filme, a verdadeira dureza em Gran Torino é marcada pelo olhar de Eastwood, seus gestos e a maneira com que administra as mais delicadas situações – sempre determinadas pelo trauma de quem teve de lidar com a violência e acabou tendo sua visão do mundo reavaliada por ela.

E é desta reavaliação de valores que trata em sua essência Gran Torino, mas num efeito reverso, de assimilação do mundo ao redor. Walt começa o filme como um típico americano conservador, na pior concepção da palavra: racista, rancoroso, egoísta e desencaixado do mundo em que vive – sem aceitar, por exemplo, as tatuagens e piercings da neta, ou qualquer outra coisa que deixe em evidência que seu tempo já acabou, que os dias são outros. A amizade que surge com seu vizinho adolescente e de ascendência coreana, assim como as constantes conversas com o padre, porém, fazem com que Walt comece a conhecer melhor alguns aspectos da sociedade que julgava sem compreender. A relação de afetividade entre ele e o garoto, especialmente, é pontuada por diversos momentos de auto-conhecimento e auto-avaliação, ao mesmo tempo em que os valores considerados importantes para a fundamentação do caráter masculino são transmitidos por Kowalski ao rapaz (afinal, o conservadorismo também traz consigo um ideal de homem ainda hoje evidenciado como base da masculinidade).

São encontradas por aí algumas reclamações pesadas sobre dois aspectos de Gran Torino - aparentemente as críticas não fugirão muito disso -,  a quantidade de clichês do roteiro e os atores que contracenam diretamente com Eastwood nos momentos-chave do filme. No que diz respeito aos atores considero uma grande injustiça, já que tanto Cory Hardrict quanto os demais personagens de suporte seguram a bronca muito bem. Mas o que realmente intriga é saber como seria possível Gran Torino sem o que costumam ter por “clichês”, principalmente se analisarmos o filme dentro do contexto geral da carreira de Eastwood e do próprio Cinema. Eastwood encerra alguns de seus temas preferidos com um protagonista que ao mesmo tempo é uma síntese e uma subversão a boa parte de suas caracterizações - quase uma auto-avaliação, um processo semelhante ao que passa Kowalski durante o filme.

O final, em especial, é a desconstrução definitiva de sua figura mitológica - e do mito de herói também, de uma forma ainda mais abrangente. Poderia talvez afirmar ainda que é um encerramento planejado do que até hoje entendeu-se por eastwoodiano no Cinema - o fato de o próximo filme ser uma biografia de Mandela até dá liberdade pra uma suposição dessas, mas ainda é cedo demais pra ter certeza. De qualquer forma, sabe-se apenas que Eastwood decidiu encerrar sua carreira como ator com este personagem, o que me parece uma decisão acertadíssima - incrível como saber disso deixa os momentos finais com um sabor ainda mais amargo.

Dessa forma, é praticamente impossível segurar as lágrimas quando você começa a ouvir a voz de Clint interpretando a canção tema, enquanto os créditos finais invadem a tela. O filme definitivo de Eastwood.

Comentários (3)

Angelão | sexta-feira, 18 de Maio de 2012 - 14:09

Maravilhosa crítica.

Joéser Mariano da Silva | quarta-feira, 17 de Julho de 2013 - 13:02

Considero esse um dos melhores filmes do Clint é muito bem feito e mesmo que eventualmente recorra a clichês, o filme passa uma sensação de que a vida das pesssoas gira em falso com as dores que carregamos

Cristian Oliveira Bruno | terça-feira, 26 de Novembro de 2013 - 17:18

Poucos atores conseguem sustentar um filme como protagonistas depois de uma certa idade (embora eu considere isso um absurdo!) Mas Clint tem uma presença tão forte e marcante que é impossível desviar o olhar dele durante toda a projeção.

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