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Críticas

Cineplayers

Spielberg traz para nossa realidade pós 11 de Setembro a clássica história de H.G. Wells

9,0

No século 19, a Inglaterra estava invadindo e colonizando Ásia e África com força bruta, nesse cenário, HG Wells resolveu fazer uma alegoria sobre a situação colocando a Inglaterra na mesma posição dos colonizados e utilizando marcianos como inimigos, nasceu assim o celebrado romance de ficção científica Guerra dos Mundos. No final dos anos 30 enquanto o mundo estava tenso com a guerra na Europa, Orson Welles apavorou os Estados Unidos com sua apresentação da Guerra dos Mundos no rádio, quase vinte anos mais tarde e no auge da Guerra Fria, veio a primeira adaptação para o cinema produzida pelo especialista no gênero George Pal, atualizando a trama e injetando elementos de religião. Agora, ainda na sombra do 11 de Setembro e dos conflitos no Iraque chega a mais nova adaptação por Steven Spielberg. O livro permanece atual e de tempos em tempos a história criada por Wells retorna para lembrarmos de nossa infinita arrogância em relação à natureza e ao semelhante, será que um dia aprenderemos?

A arrogância é um tema recorrente também no filme de Spielberg e após uma breve narração, onde Morgan Freeman lê trechos do livro, conhecemos a família Ferrier e seus insignificantes conflitos. Separados, a esposa traz os filhos para passar o fim de semana na casa do pai, Ray, vivido por Tom Cruise e o clima de desconforto entre eles é imediato. Os filhos não se acanham em jogar na cara dele o quanto o padastro é mais bem sucedido e o quanto eles se sentem ignorados, mas Ray também não está se importando, é um homem imaturo e um tanto cheio de si. Poucos minutos depois os primeiros raios surgem no céu e, como devemos esperar, a invasão chega e a vida deles será marcada pelo evento.

Problemas mundanos são esquecidos em frente a uma ameaça de extermínio e logo Cruise parte numa desesperada fuga com seus rebentos, a menina Rachel, vivida pela pequena e talentosa Dakota Fanning e o adolescente Robbie, vivido pelo ainda pouco conhecido Justin Chatwin. Spielberg é um bom diretor de atores e os personagens são bem delineados, Cruise convence como pai desastrado que tenta reconquistar os filhos, Dakota rouba cenas com seus maneirismos e irrita com suas crises e Chatwin, apesar de não se equiparar aos outros, é eficaz ao emprestar a Robbie a típica impulsividade de adolescente. Mais tarde eles encontram Ogilvy, vivido por Tim Robbins, um homem misterioso e desequilibrado. É curioso notar que os humanos são igualmente ameaçadores, reduzidos a quase selvagens quando se trata de luta pela sobrevivência.

Guerra dos Mundos é um Spielberg clássico, trazendo dois de seus elementos favoritos e que estiveram em filmes memoráveis como E.T. e Contatos Imediatos do Terceiro Grau: uma família partida de um lado, alienígenas do outro. A dinâmica da família é embalada com humor e naturalidade, já as sequências dos ataques dos aliens são conduzidas com maestria técnica e efeitos visuais de cair o queixo. Spielberg é especialista em manipular imagens e sons para estabelecer suspense e excitação, ele não me decepcionou, criando sequências memoráveis como o surgimento do primeiro tripod; do terremoto que o precede à sinistra sirene que ele emite antes de atacar, numa referência ao seu Contatos Imediatos. Existem diversas outras citações ao longo da projeção, onde Spielberg se permitiu a auto-referência. Mas do deslumbramento inicial ele segue causando o máximo de efeito aterrorizante possível para um filme nessa faixa etária. Pensem na sequência do T-Rex em Jurassic Park, mas extendida em uns quarenta minutos.

Diferente de Independence Day e como no livro de Wells, a guerra é mostrada apenas do ponto de vista do protagonista e a câmera está sempre no nível das pessoas o que torna a ação muito mais pessoal e os gigantescos tripods muito mais ameaçadores. Nunca são mostradas ações em outros países e as únicas informações que temos são as ouvidas pelos personagens. Apesar de suas pretensões não serem maiores do que faturar na época do verão americano, Guerra dos Mundos é um filme-pipoca diferente dos demais pelo tom depressivo que ele sustenta e pelo conteúdo alegórico trazido pela obra de Wells. Existe até uma provocação ao próprio cinema espetáculo na cena onde em vez de mostrar uma épica batalha ocorrendo atrás de uma colina, Spielberg prefere fugir com seus personagens para um porão, negando o que poderia ser uma gratuita cena de efeitos especiais. Embora esse momento no porão e a subsequente cena da captura acabem causando um corte abrupto no ritmo e diminuem a força do filme no terceiro ato, já que finalmente percebemos que nossos protagonistas são menos indefesos do que aparentavam até o momento.

Meus problemas com o filme foram poucos, talvez o fato de que ele depende muito do quanto o espectador se envolve com os personagens já que eles serão acompanhados o tempo todo, ou da já citada diluição do impacto no último ato. Desconhecimento do material original não atrapalha mas sem dúvida ajuda a comprar várias liberdades lógicas tomadas, já que Spielberg foi fiel ao livro em vários pontos importantes. 

Normalmente não gosto de descrever aspectos da trama para minimizar o uso de spoilers mas no caso desse filme em particular vou pedir aos leitores que pulem os próximos parágrafos caso não tenham assistido ao filme.

Eu comecei falando sobre arrogância e terminarei falando sobre o mesmo assunto ao tratar do final do filme. Spielberg manteve-se fiel ao livro nesse aspecto e a razão pelo qual os alienígenas são derrotados permanece sendo os germes presentes na nossa atmosfera. A vingança da natureza à criaturas tão "alienígenas" ao nosso ecossistema, afinal nenhuma espécie aqui possui o tipo de evolução em três patas que eles apresentam, dilui um pouco a mensagem anti-bélica de Wells e vai acabar soando muito forçada para a a maioria das pessoas que desconhecem esse aspecto da trama original. Para Wells, os alienígenas são mais uma alegoria à opressão aos mais fracos, então é relevante que eles sejam derrotados pela criatura mais simples que existe. E que sua arrogância os leve a ignorar uma ameaça aparentemente insignificante.

Um fator que parece aborrecer vários espectadores é quando Ray chega em Boston encontrando toda a família ilesa junto com Robbie, que se separa dos outros em uma cena onde fica a dúvida se ele sobreviveu. Spielberg foi acusado de não ter tido coragem de matar nenhum personagem em prol de um final feliz mas não compreendo a necessidade dele matar algum personagem a fim de provar alguma coisa depois de várias cenas violentas e tensas. Acredito que não haveria cenário vencedor, se Robbie morre ele teria sido obrigado a criar algum elemento melodramático a fim de fechar a trama do "pai ausente", um dos temas do filme, e certamente seria acusado de "apelar para lágrimas". Além disso, o fato da família sobreviver é completamente plausível visto que o exército estava na cidade ajudando as pessoas a se esconderem e como a câmera sempre acompanha Ray, ao se separarem nunca vemos se Robbie foi longe o suficiente para realmente estar em perigo.

Como bônus, o casal que interpreta os avôs são os protagonistas do filme de 1953. Guerra dos Mundos é assustador e divertido como uma montanha-russa, e bastante recompensador como cinema. 

Comentários (4)

Cristian Oliveira Bruno | terça-feira, 26 de Novembro de 2013 - 17:49

Esse é um remake que supera (e muito) o fraco original. Mudar o ponto de vista do exécito para o de cidadãos comuns, apesar de nada original, fez toda a diferença. Sem contar a super-produção de Spielberg

Marlon Tolksdorf | terça-feira, 16 de Junho de 2015 - 15:17

Excelente filme, muito agradável de assitir.

Luiz F. Vila Nova | terça-feira, 09 de Fevereiro de 2016 - 17:51

Bela crítica (a melhor que já li sobre o filme). Gosto bastante deste também, que conta com uma das melhores direções de Spielberg, momentos de gelar a espinha e uma parte técnica irrepreensível.
Quanto as críticas pelo fato de Robbie não ser morto na cena da conflito, acredito que deve-se principalmente pelo diálogo que ele tem com o pai antes da explosão, em que Ray explica para ele que aquela atitude que ele vinha tendo (se voluntariar para ir a guerra) não resolveria nada, e caso sua morte se concretasse ali, a mensagem perduraria, o que infelizmente não aconteceu.

Robson Oliveira | domingo, 03 de Fevereiro de 2019 - 13:30

Filmaço, gosto pra caramba deste, ja assisti várias vezes e não me canso. Produção impecável.

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