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Críticas

Cineplayers

Tratando de tema sério com bom humor e irreverência, critica a ganância corporativa e surpreende agradavelmente.

8,0

“Estamos em estado constante de guerra (...) matamos nossos irmãos, completos estranhos, culpados e inocentes. Estamos em guerra com nossos próprios corações. O amor é um cessar-fogo destinado a fracassar.”

Alguém já disse que fazer rir é muito mais difícil do que fazer chorar. Seria esta a justificativa para as comédias sem graça, ou mesmo constrangedoras, que freqüentemente nos são apresentadas. Guerra S. A. não chega a ser hilária, mas acaba por não merecer juntar-se à enorme montanha de lixo produzido pela indústria cinematográfica.

A primeira característica desejável a um filme é que ele soe convincente. Transitando entre o sério e o cômico, esta produção do ator John Cusack é uma sátira que convence à medida que mostra, com cinismo e bom humor, como a realidade do mundo atual é absurda. Cusack é Hauser, um “prestador de serviços autônomo” (ou um matador profissional, como preferir) que, atendendo a pedido de um cliente, a empresa Tamerlane, segue para o Turaquistão, um país imaginário do Oriente Médio. Sua missão é impedir que um ministro local construa um oleoduto para escoamento de petróleo. A Tamerlane, responsável pela guerra de conquista do território do Turaquistão, procura manter o monopólio de exploração dos recursos da região.

Hauser irá atuar como “agente disfarçado”, assumindo as funções de um “produtor de eventos”, responsável pela organização de uma “feira de negócios” destinada a expor e vender os produtos que o “novo e liberado Turaquistão oferece aos cidadãos”. A tal feira, claro, negocia produtos comercializados pela Tamerlane. Detalhe: o dono da Tamerlane, um ex-chefe da Cia (Ben Kingsley, como Walken), foi nomeado pelo governo dos EUA como vice-rei do Turaquistão!

Em meios aos preparativos para o evento, Hauser é assessorado por Marsha Dillon (Joan Cusack em ótima performance), sua eficiente e amalucada secretária. Em seu caminho surge a jornalista politicamente correta Natalie Hegalhuzen (Marisa Tomei) e a estrela pop local Yonica Babyyeah (Hilary Duff). Enquanto procura cumprir sua missão, Hauser, aos poucos, abandona sua cômoda posição neutra.

O filme tem muitas referências não disfarçadas que começam a se fazer notar com o próprio início da projeção. O letreiro que contextualiza a história remete de cara à Guerra nas Estrelas. Hauser é a síntese de vários clichês, como o típico herói solitário amargurado e torturado por fatos ocorridos no passado; uma mistura propositalmente mal acabada de Han Solo com James Bond. O emprego da trilha sonora lembra muito Pulp Fiction mesclado ao clima de western, especiamente nas sequências iniciais. As externas, meio caóticas, apesar de procurarem aludir ao  ambiente dos países muçulmanos, me lembrou Fuga de Nova York (de John Carpenter). O gênero permite tais associações e mesmo brinca livremente com elas. 

Impossível não associar Guerra S.A. ao caso do Iraque e à influência política e econômica que há décadas os EUA buscam exercer junto às nações do Oriente Médio. A relação é óbvia e propositalmente provocativa. Gratificante é que a crítica é feita por uma produção norte-americana. Olhando por este lado (e por outras manifestações que vinham ocorrendo nos últimos anos), não se estranha a grande guinada política pela qual aquela nação está passando com a eleição do presidente Obama. O povo norte-americano parece não mais tolerar ser conivente com a política internacional até aqui adotada por seu governo.

Recentemente, em O Senhor das Armas (2005), buscou-se mostrar como o tráfico internacional de armamentos faz dinheiro alimentado conflitos. Guerra S.A. vai além e preocupa-se em retratar o emprego das técnicas de marketing com vistas a enfraquecer as culturas locais e o uso de todo o aparato administrativo, tecnológico e logístico em benefício da exploração comercial dos povos. 

O homem é um animal que em todas as épocas buscou respaldo no desenvolvimento técnico-científico para dominar a natureza, de acordo com suas necessidades. Assim, chegamos às atuais possibilidades de conforto e bem-estar para quem os pode comprar. É verdade que em paralelo ao desenvolvimento tecnológico ocorreu a evolução do pensamento moral e ético, como também é verdade que ética e objetivos capitalistas raramente caminham com mãos firmemente atadas. O aperfeiçoamento das técnicas de administração e marketing chegou a tal nível que mascara com perfeição a pobreza espiritual do homem contemporâneo, submetido à ditadura do ter em detrimento do ser. 

O mundo atual, com todas as suas conquistas materiais, representa o auge do cinismo e da frieza diante das péssimas condições de vida de grande parte de sua população. Enquanto poucos esgotam os recursos do planeta, para outros sobra o lixo (em mais de um sentido) produzido pelo consumismo do primeiro mundo. Em um Turaquistão emblemático, o estilo Britney Spears e a “sexualidade ocidental alienada” são comercialmente explorados em prejuízo da valorização que a cultura local reserva às mulheres;  fast food parece melhor do que a culinária local; personagens da cultura de massa norte-americana invadem os espaços;  música pop é o produto que ecoa impulsionada por videoclips milimetricamente planejados com vistas a resultados.

O cerne da questão não é o poder de estados totalitários que reprime indivíduos e manipula as massas – tão bem referido por George Orwell, Aldous Huxley e pela infindável corrente de marxistas –, mas sim o neoliberalismo, a livre iniciativa aplicada por alguns no sentido de lucrar com as opções de outros. Assim, totalitarismo e neoliberalismo caem no mesmo lodaçal. 

Guerra S.A é um filme corajoso e vindo de John Cusack chega a ser surpreendente. Poderia ter sido uma produção genial, porém, infelizmente, tem um ponto fraco: a previsibilidade do roteiro escrito por Mark Leyner e Jeremy Pikser, além do próprio  Cusack. Em certo momento o desfecho se torna óbvio, ou seja, o brincar com clichês se tornou descuidado, passou dos limites e acabou prejudicando o resultado final. 

De qualquer forma, é um filme que merece ser visto e pensado. Compreendê-lo significa entender melhor o mundo em que vivemos ou relembrar o que já sabíamos e não pode ser esquecido. E se fazer comédia é difícil, Cusack mostra que vale encarar o desafio desde que exista um bom propósito.

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