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Críticas

Cineplayers

A adaptação cinematográfica definitiva de Shakespeare.

9,0

Transportar uma grande obra de uma determinada mídia para outra sempre foi uma das grandes polêmicas que cercam o mundo cinematográfico, desde o seu início afeito a transformar as mais variadas obras de outros meios de expressão narrativos, notadamente a literatura e o teatro, para o mundo das imagens em movimento. Certamente, quando uma obra é consagrada em sua mídia original, maior é o nível de cobrança e exigência e menor a tolerância em relação às liberdades poéticas da obra original. Em seu livro de entrevistas a François Truffaut, Hitchcock disse que jamais tentaria adaptar uma obra-prima literária ou dramatúrgica para o cinema – já que o seu objetivo seria engrandecer histórias originalmente menores potencializando-as com os recursos cinematográficos.

Um dos objetos de maior discussão há décadas é o filme vencedor do Oscar de 1948, a adaptação do mestre dramaturgo William Shakespeare dirigida e protagonizada por Laurence Olivier, Hamlet (idem, 1948). Se, para muitos, é a grande adaptação shakesperiana do cinema (foi o primeiro filme não-americano a ganhar o Oscar de Melhor Filme, e também o primeiro onde o vencedor do Oscar de Melhor Ator também era o diretor), com o tempo também se tornou imensamente criticada por determinados grupos pelas liberdades que Olivier tomou em relação ao texto original – como alterar o texto de um monólogo, cortar falas, omitir personagens (notadamente Fortinbras, Rosencrantz e Guildenstern) – com a justificativa de cortar os elementos políticos e favorecer o aprofundamento psicológico do texto original (além de, é claro, reduzir a longa duração da peça para um filme de duas horas e meia) e sugerir uma forte relação edipiana entre o protagonista Hamlet, príncipe da Dinamarca, e sua mãe, a rainha Gertrude.

Polêmicas à parte, é quase impossível negar hoje que a obra de Olivier, ainda que falha como adaptação, é grande como cinema, marcando essa como uma das poucas obras que conseguem transportar o senso único de tragédia do dramaturgo para as telas (feito que versões ditas mais fiéis, como as de Franco Zefirelli e Kenneth Brannagh, passam longe de realizar). Um dos primeiros diretores que se deixaram influenciar pelas inovações estéticas que Orson Welles e o diretor de fotografia Gregg Toland trouxeram em Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) – como a exploração da profundidade de campo e a utilização de sofisticados movimentos de câmera e enquadramentos  - Laurence Olivier erigiu uma obra perturbadora, fortemente marcada por interiores imensos e escuros, buscando uma sondagem psicológica através de uma expressão exterior poucas vezes igualada.  Portanto, a fala do soldado Marcellus, “Há algo de podre no reino da Dinamarca”, poucas vezes fez tanto sentido. Dá para se perder naqueles corredores compridos onde as paredes têm ouvidos e traições e assassinatos são tramados à boca pequena.

Não apenas na paleta cromática sombria e nos cenários distorcidos, todo o filme traz à tona um mal estar quase palpável. A obra de Olivier não busca referência no expressionismo apenas na questão visual (preto e branco, sombras demarcadas...), mas também no firme compromisso de ser uma exteriorização de uma visão particular de mundo. É tentador, inclusive, tratar um paralelo com a vida do próprio ator-diretor, terceiro filho indesejado de um pastor anglicano que perdeu a mãe aos doze anos - sua esposa na época do filme, a famosa atriz Vivien Leigh, acreditava que o filme era uma forma de Olivier expulsar seus tormentos freudianos, uma tendência forte no cinema da época – e que acaba, possivelmente, aproximando o Hamlet do diretor ao film noir, desmembramento policial dos filmes alemães expressionistas de Murnau, Wiene e Lang. Enquanto as câmeras movem-se, câmeras focam e desfocam, profundidades de campo são amplificadas e distorcidas, imensos corredores são revelados  e o castelo onde habita a Corte da Dinamarca torna-se um lugar quimérico, pertencente à ordem dos sonhos, onde se dispensa qualquer tipo de  verossimilhança em nome da expressão – é o fantasma do pai (um espectro de voz grave cujo rosto não se vê e inunda os ambientes onde materializa-se por meio de nuvens de fumaça e distorções espaciais por meio de truque de luz) que avisa Hamlet de quem foi seu assassino, seu tio e novo rei Claudius, e o incumbe da missão de fazer justiça.

A interpretação de Olivier para as telas é menos frágil e melancólica (da forma popularizada pelo teatro vitoriano) e mais perturbada e imponente. Sua atuação é febril e firme para encarnar um personagem cujo lado vingativo e arrogante era ainda mais presente. Dessa forma, acabaria encontrando semelhanças com a interpretação do famoso psicanalista Lacan, que partindo do ponto de vista de Freud, via Hamlet como uma persona fálica delirante, que uma vez impotente pelo luto, logo assume um estado psicótico de ciúme quando tem que lutar pelo lado materno com outro homem.

Apesar das fortes figuras masculinas, não parece ter sido jamais da intenção de Laurence Olivier diminuir as figuras femininas, constantemente obliteradas pelos intimidadores, duros, paranóicos e arrogantes homens ao longo da trama. Hamlet e Claudius tem suas facetas de meninos mimados, disputando por um lugar ao lado do trono da rainha. Eileen Herlie como Rainha Gertrude interpreta uma personagem inocente que não tem noção do mal que a cerca e acaba sendo vítima da conspiração cruel de Claudius e Laerte contra Hamlet. Já a Ophelia de Jean Simmons é a primeira das personagens a cair – perde o pai Polonius, é tratada como prostituta por um Hamlet que, traído pela mãe, passa a desconfiar de todas as mulheres e acaba caindo na loucura e no suicídio. O também psicanalista Ernest Jones influenciou Olivier na hora de construir Ophelia como uma mulher que jamais tem o amor correspondido pelo príncipe Hamlet, pelo seu pai Polonius e o irmão Laertes.

Com as críticas políticas sobre traição e conspiração no mundo da nobreza limadas, concentrou-se afinal no lado atemporal de Hamlet, e o que há de melhor nas peças de Shakespeare – o lado emocional. O respeito da visão imprimida por Olivier nesse quesito é tanto que pouco se sente a perda do lado social – somado com a sua visão febril e delirante onde o que era apenas sugerido é explicitado de forma quase grotesca. Ciúme, inveja, vingança, ressentimento: sentimentos tão velhos, que continuam fortes quatro séculos após o texto original ser publicado, quanto mais de seis décadas após o filme.

Após interpretar a concretização da vingança de Hamlet em um salto acrobático sobre Claudius, o ator finalmente faz aquele personagem imponente enfraquecer e tornar-se frágil o suficiente, através dos jogos de posições e angulações de câmera e da decomposição da postura corporal para tornar-se o “Doce Príncipe”, epíteto dado por Horatio como despedida. Um grande travelling disposto a acompanhar o funeral de tal figura notável mostra o trono da Dinamarca agora vazio, após quase toda a corte dinamarquesa morrer. Não há a vontade de Horatio de se martirizar nem a ameaça do príncipe Fortinbrás, limado do filme, atentar contra a corte atual. O filme termina num fatalismo suspenso, sem projetar nada para o futuro. O trono real está vazio, não há substitutos e as emoções humanas, mais uma vez, ignoram qualquer traço do que poderia ser considerado tradição, e o movimento final de câmera parece descrever as últimas palavras do falecido príncipe da Dinamarca: “e o resto é silêncio”. De fato, não dá para ficar menos do que estupefato ao final da obra-prima do homem que, junto de Orson Welles, foi o responsável por atualizar no cinema e lembrar para as futuras gerações, porque, afinal de contas, o Bardo foi o maior de todos.

Comentários (1)

Adriano Augusto dos Santos | terça-feira, 21 de Fevereiro de 2012 - 08:50

Excelente texto sobre esse filme pouco lembrado.
Mas finalmente ele parece estar entrando num radar mais popular.
E merece,pois Shakespeare impressiona.

É bom demais,o trabalho de direção é absurdo de bom.Tecnicamente é perfeito.
(fora que foi a estréia de Peter Cushing e Christopher Lee !).

Só não acho o melhor de Shakespeare no cinema,pois as obras de Kurosawa são incríveis.
Mas das que usam o texto original com certeza é.

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