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Herói, Um

(Ghahreman, 2021)
8,0
Média
34 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Mais um Herói

9,5

Aos sorrisos, Rahim (Amir Jadidi), saindo de um espaço de reclusão, corre, acompanhado por um travelling, em direção a uma estrada. A pressa que vemos nele, contrasta com a imensidão do espaço aliado ao movimento das pessoas e dos carros – o plano se estende – revelando um taxi que o leva diretamente as ruinas de Persopolis. O misterioso protagonista caminha sem impressionar-se com a enorme construção e está confiante e determinado por seu objetivo: encontrar o seu cunhado. Após a difícil conversa entre os dois, há um corte, onde somos então transportados a uma zona urbana e vemos Farkhondeh (Sahar Goldust), saindo de seu apartamento em velocidade enquanto põe a burca para proteger os seus longos cabelos. Em cortes rápidos, a imagem abrevia sua descida pela escada em fragmentos. Parece que a câmera corre atrás do tempo, deixando ao espectador a sensação de que a mulher pretende de alguma maneira vencê-lo.   

Os dois finalmente se encontram. Estamos diante de mais um casal fahradiano dentro de um carro prestes a enfrentar um desafio que irá mudar as suas vidas. A mulher parece trazer consigo a solução dos problemas de seu parceiro, já ele carrega nas costas o peso do mundo, e a expectativa de resolver sua situação carcerária o mais rápido possível. 

O tempo, desde o princípio já parece caminhar contra o herói, quando tudo parece pedir calma e parcimônia são os seus impulsos que o controlam. Os primeiros minutos que dão lugar a uma proposital ambiguidade, com o passar do tempo, servem como excertos de um quebra-cabeça dramático. Os detalhes dados pelos diálogos no decorrer do caminho do protagonista, como por exemplo, seu vício pelo cigarro ou sua excessiva barba, enredam-se aos novos fatos que vão se apresentando a cada novo encontro. 

O relato se inicia, a partir de um conjunto de ações no passado que levaram o protagonista àquele momento, entretanto, vivemos com ele apenas o tempo presente. Sem necessitar de flashbacks ou de conversas explicitas, tudo o que ocorreu antes do primeiro minuto da obra, vai abrindo-se ao espectador. A poética de Asghar Fahradi já em outros momentos optava por este tom introdutório inicial, em Todos Já Sabem (Todos lo Saben, 2018), por exemplo, o decorrer da narrativa revela ao espectador uma trama de relações do passado que vai muito além da recompensa por um sequestro de uma adolescente. 

Ainda que o dinheiro seja o grande motim da desestrutura daquelas pessoas, são as relações familiares que estruturam o cinema de Fahradi. Em Um Herói (Ghahreman, 2022) é quando Rahim chega a sua casa, numa mesa de jantar feita em sua homenagem pela sua volta, após o logo tempo de ausência, que tudo escancara-se ao público, não por ele – mas sim por sua irmã – frustrada e ansiosa por uma saída que melhore os rumos de sua família, pressiona o irmão para encontrar uma solução realista ao problema, já que passara acumular a criação de sua própria filha, os cuidados do marido, e a educação do sobrinho.   

Tal qual o cinema do mestre Yasujiro Ozu, Asghar Fahradi formula um cotidiano familiar, onde tudo se desenrola com aparente normalidade e harmonia. No caso do japonês, geralmente, o drama gira em torno do próprio núcleo doméstico, como vemos em Banshun (1994), onde uma mulher de 27 anos, cômoda como cuidadora do pai, surpreende-se com um novo casamento-postiço do mesmo, obrigando-a a buscar um marido; por outro lado, o iraniano coloca toda a família em problemas que dizem respeito a apenas um indivíduo, e se não fosse por este, tudo seguiria exatamente igual. Ou seja, para o primeiro a rotina tem o seu próprio encanto por si só, já o segundo não se basta com o ferver do chá, precisam haver queimaduras, e cabe ao espectador observar a cicatrização desse processo. 

Em A Separação (Jodaeiye Nader az Simin, 2011), o sistema judiciário serve como alegoria do próprio espectador, observador do drama daquelas duas famílias, e tendo a oportunidade de colocar-se naquela situação. Mesmo que seu cinema não seja marcado por soluções maniqueístas no roteiro, Fahradi pretende proporcionar um panorama completo a quem assiste, e deixando-lhe livre para tomar seus próprios julgamentos. Nesta última obra, as coisas caminham de forma similar, durante o caminho de Rahim, desde Persepolis até ao jantar com a sua família há pequenos indícios do tamanho do problema, da dificuldade do protagonista em lidar com ele, mas tudo fica claro a partir da intervenção feminina de sua irmã, um elo que liga o título e os dois personagens apresentados na introdução. 

Naquele cenário típico de uma casa iraniana, absolutamente simples, mas composto de detalhes meticulosamente calculados, perfeitamente organizado e limpo, notamos que tudo estava sob os conformes na vida daquela família. Os problemas como o abuso dos jogos de celular do filho de Rahim, que poderiam ser discutidos de forma mais harmoniosa, agora mostram-se muito maiores do que são. Tudo no cinema de Fahradi está condicionado a ação humana, sentimentos reais de pessoas reais, portanto, são as escolhas do protagonista que levam a estabilidade deste ambiente a desmoronar-se.   

O realizador iraniano é virtuoso nessa composição entre narrativa e cenário, o próprio já afirmou que busca criar uma mise en scène próxima ao documental. E tal qual um bom documentário, pretende-se que o público não pense sobre cinema ou estética, mas sim sobre o que o filme conta. Entretanto, isto não quer dizer que sua obra seja simplista no aspecto formal, pelo contrário, enquanto nos debruçamos sobre os rumos da vida daquelas pessoas, há apenas uma pessoa que sabe o destino de todos as peças. Faharadi atua como um titereiro narrativo, a sua forma de decupar o tempo e a imagem é único, mas sua capacidade como contador de história é tão fascinante que de fato, escapa-se aos olhos sua forma. 

Todas as peças dadas pela narrativa encaixam-se neste momento de regresso ao lar, e a partir daí é como se começasse um novo filme. Entendemos que o protagonista possui uma grande dívida por conta de um negócio do passado, e o seu credor não está disposto a ceder, e não há uma forma veloz de eliminar o encargo até o prazo de retorno estipulado pela justiça. Compreendemos também que os esperançosos encontros anteriores com a noiva e o cunhado foram tentativas frustradas de resolver a questão, Farkhondeh havia encontrado uma bolsa com moedas de ouro, e se prontificou a dá-la ao companheiro, assim este conseguira quitar sua multa, e os dois poderiam dar os primeiros passos para o casamento. Entretanto, aquelas moedas não chegavam perto do valor exigido pelo credor, o permanente desconforto do protagonista revelado em toda as suas aparições, finalmente se justifica, e sobra-lhe uma questão: O que fazer com a bolsa? A esta altura a dona deve estar desesperada, certamente necessitava do que havia dentro. Além do desejo de liberdade e da pressão familiar, o aspecto moral que já era voz em todo o imbróglio daquelas pessoas, passa a tomar um novo percurso, possuir algo que não lhe pertence invade os pensamentos do protagonista, e uma nova e instigante obra de suspense dosada de aspectos políticos, culturais e sociais, apresenta-se ao público. 

A sensação que se dá durante o visionado é que o diretor pretende manter o contato intenso entre roteiro e o público. Depois que saímos do ambiente familiar de Rahim, a cada nova etapa do filme, há um possível novo debate mental que o espectador trava consigo mesmo. Utilizando-se de recursos modernos – que antes não se mostravam em seus filmes anteriores – como o poder das mídias sociais, a clássica dialética do herói parece percorrer uma corda bamba, dominada pelo narrador invisível, cada aresta aberta é magistralmente fechada, não há excessos dramáticos. Neste sentido, aproxima-se muito mais do trabalho de Hirokazu Koreeda, por exemplo, do que das referências hispânicas utilizadas em seu filme anterior, dando um passo ao futuro, ainda que sem desprender-se do tradicionalismo do já citado Ozu.  

O percurso deste herói nada tem de clássico e linear, Umberto Eco, por exemplo, afirma que este tipo aprisiona o espectador numa racionalidade transcendental de valores inalcançáveis. A dramaticidade proposta aqui desafia ao espectador a ultrapassar as camadas entregues pelo relato, da mesma forma que mergulhamos sobre os pensamentos e motivos de Raskólnikov em Crime e Castigo (Преступление и наказание, 1866) de Fyodor Dostoyevsky, o herói fahradiano existe não para definir, mas sim para questionar, não somente seus próprios embates, mas de toda a sociedade iraniana. O percurso de Rahim, ainda que seja num país desconhecido, em persa, coloca-nos diante de um espelho, e com a certeza de que os valores vigentes pouco dizem sobre o que é certo ou errado, a escolha moral é quase sempre hipócrita, e a liberdade nem sempre é um direito meritocrático, mas sim circunstancial. 

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