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Críticas

Cineplayers

As paranoias de uma nação desconfiada

9,0

A iniciativa Homecoming parece um sucesso desde seu conceito inicial: prestar ajuda a soldados recém-chegados, a fim de reinseri-los na sociedade e tratar de seus traumas acumulados pelo tempo em que estiveram fora do país em missões de guerra. Ao mesmo tempo que passam em consultas semanais com uma conselheira, eles também interagem em simulações de retorno à vida civil, como a procura de emprego e a ida ao supermercado. Tudo parece correr bem na recepção do primeiro time de soldados recebidos na sede da Homecoming, em Tampa, Flórida. Mas é questão de tempo até a conselheira Heidi Bergman (Julia Roberts) perceber que a evolução de seus pacientes não está de acordo com o esperado.

Estranhamente, Heidi também existe em um tempo futuro em que trabalha como garçonete em uma cidadezinha do interior americano, onde é achada por um agente do FBI disposto a descobrir sobre seu passado como conselheira no projeto-teste do Homecoming – hoje já extinto e sem qualquer histórico de existência. O mais bizarro de tudo é que ela não parece se lembrar da época em que trabalhou lá. O que houve entre esses dois tempos com o projeto e com a própria Heidi é o foco do suspense angustiante de Sam Esmail, Homecoming, já disponível em streaming pela Amazon Prime Brasil.

Quase uma emulação do cinema de Alfred Hitchcock, Homecoming conta com um clima de suspense crescente e confusão cada vez maior, ampliados pelo senso estético perturbador impresso por Esmail. Cada episódio se inicia a partir da trilha de algum clássico do cinema, desde o episódio piloto com a música-tema que o grande Pino Donaggio compôs para Vestida Para Matar (Dressed to Kill, 1980), de Brian De Palma. O final dos episódios conta com ações correntes dos personagens, como se a narrativa insistisse em continuar mesmo após o encerramento. Todas essas opções curiosas convergem em um estudo detalhado sobre o senso de segurança corrompido de uma nação ainda incapaz de confiar no próprio governo.

Esmail é um dos estetas mais apurados da televisão atualmente e aqui repete sua predileção por planos abertos, capazes de englobar diversas ações ocorrendo simultaneamente – e cabe ao espectador identificar no quadro quais dessas ações possuem alguma relevância para a história. Essa opção estética casa com a narrativa permeada de pistas falsas, enigmas e elipses que o roteiro elabora dentro de um labirinto que nunca revela de fato o que está acontecendo. Curiosamente, no tempo presente, a tela adota o formato quadrado de 1:1, amplificando a sensação de sufocamento e desespero de uma Heidi amnésica e desesperada para descobrir sobre seu passado.

Homecoming questiona o senso de identidade e patriotismo corrompido em uma nação sem memória, em um governo aparentemente mais preocupado em cobrir seus rastros do que apoiar os cidadãos que se sacrificam por ele. A fórmula da paranoia comunista do cinema antigo evocado pela direção vintage se volta para uma adaptação em que o objeto de desconfiança não é mais a infiltração de estrangeiros inimigos, mas sim os próprios compatriotas, as classes militar e política. Um elenco afiado completa o combo de sucesso, em especial os protagonistas Julia Roberts e Bobby Cannavale, que dão um show de dualidades, contrastes e mistérios. É impossível decifrar o que eles escondem e até onde sentem de fato o que aparentam, e sem esse trabalho minucioso e mimético o roteiro não teria metade do seu impacto.

Quando se diz que a vida inteligente em Hollywood tem migrado para a televisão, muito se dá por conta de projetos como Homecoming, que apresentam tamanha criatividade, frescor e atributos do bom cinema. Não à toa astros do calibre de Julia Roberts – também produtora executiva – se interessem pelo novo formato, atrás de papéis melhores e roteiros mais interessantes. Esmail, criador da série Mr. Robot, é um desses nomes que podemos facilmente imaginar como brilhante cineasta, mas que prefere apostar as fichas em um formato hoje muito mais cheio de inovação e possibilidades. Homecoming já está renovada para uma segunda temporada e, se repetir nem que seja metade da qualidade dessa primeira, já tem o interesse garantido de quem já teve a oportunidade de assistir.

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