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Críticas

Cineplayers

A estratégia da aranha.

7,5

A questão da identidade norteia muitos dos filmes mais interessantes do cinema, e em alguns casos é o tema central da obra completa de alguns cineastas, vide David Lynch. Na literatura, um dos maiores nomes a abordar o tema através de diversos prismas e esferas, sempre apontado um novo ângulo e resolução a cada novo livro, foi José Saramago. Mais especificamente, Saramago muitas vezes questionou a noção da identidade individual sendo perdida em um mundo cada vez mais globalizado. Não à toa que seu romance tenha servido de base para o novo trabalho de Denis Villeneuve, O Homem Duplicado (Enemy, 2013). Se antes em sua curta filmografia o diretor se preocupou em abordar a iminente ruptura da sociedade em uma escala coletiva, agora ele aposta em uma incisão minimalista sobre a destruição do fator que nos dá o senso de “eu”.

No caso, a questão é abordada pelo recurso das dicotomias, discorrendo sobre o duplo de cada um. Desta vez, no entanto, nada de personagens lunáticos de múltiplas personalidades, ou espelhos partidos refletindo um rosto multiplicado em mil pedaços. Tudo em O Homem Duplicado é mais “físico”, embora de fundo inegavelmente metafórico. Adam (Jake Gyllenhaal) é um professor preso em uma rotina insossa de aulas, correções de provas, trânsito, sexo com a namorada de ocasião. Depois de aceitar a sugestão de um amigo de assistir a um filme, ele acaba entrando em um pesadelo ao encontrar na tela um homem de aparência idêntica à dele. Após conhecer seu duplo, o ator Anthony, o professor entra num processo espiral de confusão crescente, até chegar ao ponto de não saber mais distinguir sua própria pessoa.

É um filme de enlouquecedora dinâmica cíclica, propositalmente montado e narrado de forma a fechar uma roda tão estreita e tortuosa, que o próprio espectador tem que lutar para não perder o fio da meada e deixar escapar a distinção entre cenários e personagens, onde começa uma coisa e onde termina outra. Para isso, o diretor recorre a uma fotografia amarelada que torna homogêneos todos os ambientes e planos, que logo se camuflam e se sobrepõem em um jogo cada vez mais afundado na esquizofrenia do personagem duplicado. Todo o estofo técnico tem um porque, e nota-se aí a habilidade de Villeneuve em fazer de O Homem Duplicado não um simples filme espertinho, mas uma teia de aranha de estratégia complexa.

Aliás, há aranhas literalmente transitando pela trama, dentro de um universo de dicas e signos visuais que enriquecem a leitura da obra. Por exemplo, logo de cara, ao acompanhar a rotina de Adam, Villeneuve faz questão de usar sua aula sobre as ditaduras para dialogar diretamente com o espectador sobre seu jogo de perspectivas. Adam cita pensadores que profetizam que o século XXI será uma repetição do século XX, e ainda inclui um pensamento perturbador de Karl Marx que com certeza se aplicará sobre a trama no decorrer do filme: “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Mas como saber o que é farsa, o que é repetição, quem é o duplicado de quem, quando todo esse universo se fecha em um labirinto sem início ou fim?

Alguns críticos associaram a obra ao cinema de Cronenberg e ao de Lynch, mas talvez com certo equívoco. Se há momentos em que de fato o filme esbarra em alguns conceitos da filmografia de Cronenberg, o que o aproxima do cinema de Lynch não é a confusão espaço-temporal ou o choque com a lógica, mas sim a discussão em comum sobre a desconstrução gradual do indivíduo dentro de uma sociedade. Nos filmes de Lynch, por diversas vezes, um mesmo personagem se projeta em dois corpos distintos, ou contrariamente um mesmo ator encarna dois papéis antagônicos, como símbolo visual das nossas dualidades, dos conflitos internos entre o que aparentamos ser e o que somos de fato no íntimo, até chegar ao ponto da perda dessa noção do real, perdendo-se junto o senso do “eu”. E nisso quem ganhou mais foi Jake Gyllenhaal, em um grande momento de sua carreira, pontuando e contornando bem as modulações dos personagens, sabendo em determinados momentos aproximar Adam e Anthony em um só ser humano, enquanto em outros os divide em lados opostos.

O Homem Duplicado é o filme mais enigmático e desafiador de Denis Villeneuve, e mais uma prova de que se trata de um cineasta diferenciado e acima da média, que sabe driblar imposições de estúdios e manter sua marca, como fizera antes em Os Suspeitos (Prisioners, 2013), e ainda adaptar um escritor difícil como José Saramago, sem decepcionar como uns e outros por aí (leia-se Fernando Meirelles). Acima de tudo, o diretor aproveita para progredir numa unificação de sua filmografia, que vai avançando e construindo uma identidade muito forte. Melhor de tudo, não sucumbe às auto-explicações nem ao pragmatismo, honrando o nome de Saramago e deixando apenas para Adam/Anthony e para a degustação do espectador as complicações relativas à moderna crise existencial.

Comentários (14)

Gustavo Santos de Araújo | segunda-feira, 30 de Junho de 2014 - 13:39

Excelente obra. Desperta uma desesperadora busca por respostas, relacionando a teia complexa da identidade pessoal à um conflito pessoal, caótico que se perde e se encontra ao mesmo tempo. Até que ponto podemos ser verdadeiramente ''nós'' ? e até que ponto podemos permitir uma fuga da ditadura imposta pelo cotidiano, pelo moderno e pela a vida que se construiu sem o nosso pleno consentimento? Interpretações ótimas, trilha sonora espetacular, em alguns momentos lembrou-me fragmentos do excelente ''De olhos bem fechados'' do Kubrick, tanto pela sonoridade, como pela perda em si do personagem.

Fabiano Chinaski | quinta-feira, 03 de Julho de 2014 - 22:59

Muito bem percebido Gustavo Hackaq Guimarães e Caio Henrique. A escultura que se encontra em Ontário é criação da artista Louise Bourgeois. Há uma série de aranhas espalhadas pelo mundo todo; no Brasil há uma exemplar no parque do Ibirapuera, em SP. A artista trabalha bastante a articulação entre as questões do feminino, da sexualidade, das identidades, das fobias, do desejo,a pasicanálise ( e aí questão do pai) etc. Esta é uma das chaves de compreensão do filme. [POSSÍVEL SPOILER]. Anthony é uma espécie de espelho invertido de Adam: o primeiro vive o matrimônio, mas é bastante depravado, infiel, etc. Já Adam que tem uma relação afetiva mais casual, aparece como alguém mais entregue para o papel paterno e para as presas da viúva negra. Logo, é quase um substituto natural de Anthony (vale lembrar que a namorada de Adam descobre a repetição como "farsa" justamente pela marca de aliança na mão de Anthony).

Alexandre Marcello de Figueiredo | sábado, 29 de Novembro de 2014 - 19:13

O filme é intrigante e prende o espectador até o desfecho enigmático, só não gostei do final, ainda assim é melhor que muito blockbusters que infestam o mercado.

MARCO ANTONIO ZANLORENSI | quarta-feira, 14 de Janeiro de 2015 - 17:06

Eu achei bem complicado, e também relativamente curto, a hora que acabou fiquei pensando, o que? O que? E agora? Depois de trocar umas ideias e ler um pouco a coisa começa a clarear, bom filme, uns minutinhos a mais seria uma boa pra deixar a mente mais aguçada.

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