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Homem Invisível, O

(The Invisible Man, 2020)
7,2
Média
166 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

O horror doméstico

7,5

    Herbert George “H.G.” Wells é um dos nomes mais importantes da literatura de gênero. A criatividade prodigiosa de um dos pais da ficção científica, além de imaginar clássicos como Guerra dos Mundos e A Máquina do Tempo, também cravou um clássico da alegoria moral: O Homem Invisível, publicado de forma seriada em 1897 para a Pearson's Weekly. Sua narrativa sobre Griffin, um cientista que torna-se uma ameaça ao descobrir uma solução que o deixa invisível, também influenciou muito o gênero terror ao lado de outro clássico seu, A Ilha do Dr. Moreau. Ambos falavam sobre ética científica a partir de uma narrativa excitante e cheia de suspense, e o resultado não poderia ser outro.

    A maior prova dessa influência multigênero é que Griffin tornou-se um dos monstros da Universal, o quarto após Drácula, Frankenstein e A Múmia, sendo interpretado por Claude Rains em O Homem Invisível (1933), um filme que marcou época pela criatividade dos efeitos visuais baseados no uso de fios e sobreposições. A obra de James Whale, o gênio do cinema gótico que comandou Boris Karloff na clássica adaptação de Mary Shelley, também foi ousada, diferindo-se do livro ao mostrar Griffin não como um insano que obtém salvo conduto, mas como um personagem mais ordinário que progressivamente perde os escrúpulos após ser tornado invisível. Tal nuance não se mantém tanto na outra adaptação, O Homem Sem Sombra, de Paul Verhoeven, onde o diretor explora de forma mais íntima a questão do voyeurismo pincelada antes.

    E eis que temos uma terceira adaptação, onde Leigh Whannell, em um ato corajosamente inovador, inverte o escopo narrativo da história. O roteirista sempre foi um profissional de destaque no gênero: surgido junto ao diretor James Wan ao escrever e atuar em Jogos Mortais, também foi responsável por criar os roteiros de Gritos Mortais e Sobrenatural, estreando como diretor em Sobrenatural 3: A Origem, arrancando alguns elogios apesar da recepção bastante mista, e se destacando em Upgrade, um conto faustiano para refletir sobre transumanismo, ou as interações entre homem e máquina, como preferir. Mas seu novo destaque, ironicamente, só pôde ver a luz do dia devido a um fracasso de bilheteria: A Múmia.

    O filme com o Usain Bolt da tela grande, Tom Cruise, foi uma tentativa (muito) falha de iniciar o Dark Universe, uma tentativa de competir em bilheteria com a Disney/Marvel, escalando grandes atores nas propriedades intelectuais do estúdio. Para os filmes seguintes, Russell Crowe (Gladiador) foi escalado como Dr. Jekyll/Sr. Hyde, Javier Bardem (mãe!) como monstro de Frankenstein, e Johnny Depp (Piratas do Caribe) como o Homem Invisível. Danny Elfman compôs uma trilha sonora. Mas logo todo o entusiasmo foi por água abaixo; o investimento milionário bombou na bilheteria, a crítica esculhambou e a Universal engavetou todos os projetos. O projeto amargava um desgostoso fim, mais eis que dois anos pousa no cenário o padrinho do horror atual: Jason Blum.

    Com sua Blumhouse, Blum produziu sucessos altamente lucrativos como Atividade Paranormal, Sobrenatural, Uma Noite de Crime e A Morte Te Dá Parabéns, bem como produziu os vencedores do Oscar de Roteiro Original Corra! e Infiltrado na Klan; também produziu os últimos três filmes de M. Night Shyamalan, que fez as pazes com a crítica e público, e sacudiu a poeira da série Halloween com uma bem-sucedida sequência. Seu olho para projetos de sucesso e/ou qualidade tem um currículo que fala por si só, e com sua nova empreitada em parceria com Whannell, dado os destacados méritos do produtor e do cineasta, surgiu a promessa de uma abordagem interessante de uma história que poderia ser batida. Ninguém entendeu quando foi escalada como protagonista Elisabeth Moss, uma das grandes atrizes da atual geração por papéis em séries como Mad Men, Top of The Lake e O Conto da Aia, mas certamente nem os mais empolgados contaram com a inesperada reviravolta que o roteirista/diretor instaurou desde a premissa.

    Quando, sob olhares mais cínicos e debochados, os fãs de terror pregam que seu estilo favorito tem um potencial alegórico muito grande para refletir questões sociais, seja no medo atômico encarnado por Godzilla ou no horror viral de Extermínio, não estão brincando; e uma (nova) evidência óbvia é conferir este filme sobre a história de Adam Griffin, cientista genial e marido abusivo que descobre como ficar invisível… Mas tudo isso contado pelos olhos de sua ex-esposa, vítima do abuso.

    Uma sacada simples, porém que reconfigura toda a história: agora não é mais sobre o individual, o homem que perde a humanidade ao não ser mais visto por ela. Agora é um recorte necessariamente social: a mulher categorizada como louca por compartilhar os absurdos que sofre com o mundo. O agressor invisível oculta também sua vítima da sociedade. Uma alegoria certeira sobre o horror do abuso doméstico, uma tragédia cotidiana que assombra milhares ao redor do globo. Como sobreviver quando o monstro não vem de fora, mas reparte a mesma cama?

    Cecília, a única que parece ser capaz de ver as ações cruéis de Griffin (não parece ser gratuito que chamam-na pelo apelido Ci, com a mesma sonoridade de Ver, em inglês) é colocada em uma situação progressivamente claustrofóbica, e é muito interessante ver a criatividade de Whannell em ação, que trabalha ao longo de boa parte de sua primeira metade com a imaterialidade da situação: afinal de contas, pode ser que o que está acontecendo seja só impressão de Cecília, após sobreviver a anos de controle, ameaças e espancamentos. Isso, é claro, até sentirmos na pele, testemunhando junto com a personagem o horror de ser caçado, mas não ser acreditado.

    Para tal intuito, Whannell usa e abusa sem vergonha alguma da temporalidade do campo cinematográfico; são longas tomadas onde seguramos nossa respiração em antecipação a um possível susto que quase nunca vem, com o interesse sendo mantido justamente pela força imagética de um quadro cheio de vazio. Estamos procurando “o fantasma do abuso” mesmo sem querer encontrar. O diretor inverte o escopo da última versão: não estamos com o olho do pervertido, mas daquele que sofre de seus abusos. Daí vem o terror.

    Terror também sustentado por Elisabeth Moss; dizer da qualidade da sua atuação é chover no molhado. Certamente ela já viveu muitas mulheres atormentadas, mas pode-se dizer que cada uma delas emite uma vibração particular, e o misto de paranoia e catatonia aqui presentes são expressões usadas com sabedoria pela atriz, capaz de nos enganar por certos momentos; um jogo lúdico onde se ela desvenda um enigma, também apresenta-se como um. 

    É nesse ínterim que chegamos ao ato final de O Homem Invisível, um ponto no mínimo controverso do filme. É uma daquelas reviravoltas no limite do rocambolesco e do absurdo, que tenta puxar o tapete do espectador na esperança que a surpresa o deixe impressionado após a projeção terminar. Afinal, estamos falando do autor daquele final de Jogos Mortais, que praticamente vendeu a série para o público e o tornou uma franquia. Mas, aqui cabe dizer, apesar de estruturalmente dispensável, o diretor/roteirista parece ter tomado milimétrico para que isso não seja necessariamente dispensável.

    Isso porque esse último ato é um arremedo de história, que apela ao clichê muito difundido de surpeender o espectador até o último minuto. Mas eis que Whannell e Moss se preocupam justo neste fechamento em imprimir uma nova ótica, conferir novas camadas aos personagens e tornar o filme mais que a história de uma mulher sofrida oprimida por um homem cruel. Nesse momento, Cecilia reivindica para si uma independência dramatúrgica de complicar personagens-arquétipo e, se nesse momento joga a verossimilhança ou a cadência do ritmo ralo abaixo, o mesmo não pode ser dito do interesse por aquele universo.

    O filme tem sucesso ao conjugar com essa característica curiosa ao seu final, bem como uma premissa bem sacada em seu início e uma pavimentação muito interessante que constrói um olhar de assombração psicológica menos no texto e mais dentro da diegese do filme, com recursos de cortes, luz e som. Dessa forma, O Homem Invisível surge como um dos projetos mais interessantes do terror recente por dar um novo fôlego a uma velha história e uma nova ótica para personagens arquetípicos e, com isso tudo, reiteradamente marcando o valor social inequívoco dos filmes de terror para compreender a sociedade de uma época também é importante saber o que a mesma teme. E por isso mesmo, torna-se um projeto obrigatório.

    Comentários (2)

    Alan Nina | sexta-feira, 08 de Maio de 2020 - 03:04

    Que aula de texto.

    Ted Rafael Araujo Nogueira | sábado, 09 de Maio de 2020 - 19:50

    Joia o texto bicho. Ainda tenho que ver esse. Das versões, só vi a do Paul Verhoeven que gosto bastante.

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