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Críticas

Cineplayers

Da intensidade e do prazer no ato de se jogar.

9,0

O professor Abe observa um grupo de jovens adultos explicar uns aos outros do que se trata uma roleta russa, com direito a arma real na mão e uma única bala no tambor para coroar a detalhada descrição. No auge da explanação, Abe toma pra si a arma e atira na própria cabeça. Sem sucesso. Então repete a experiência uma, duas, três vezes, para desespero dos rapazes e moças, que o desarmam agora estupefatos. Abe não tem qualquer laço afetivo com a própria existência como comprova a passagem acima, mas ao longo de O Homem Irracional, passará de depressivo acomodado a entusiasta das frivolidades do ser. Racionais ou não.

Impressiona como Woody Allen continua acertando na 'teoria dos anos', aquela que o crítico que vos escreve bolou/percebeu na última década, e que de tão óbvia e acertada acabou sendo não somente compartilhada como teve e tem sua autoria reivindicada por tantos outros colegas. Já devo tê-la descrito em outros textos, mas a repito mais uma vez: pelo menos desde Match Point - Ponto Final, o judeu mais neurótico do cinema intercala a qualidade dos seus filmes ano a ano, quase de forma proposital; se levarmos em consideração que esse novo longa vem manter a tradição que entra em seu décimo, já da pra começar a desconfiar mesmo. Um ano após o bobinho e excessivamente despretensioso Magia ao Luar, Allen entrega o que talvez seja seu filme recente mais circunspecto, tão repleto de insuspeitas camadas que remete imediatamente ao injustamente ignorado O Sonho de Cassandra. Aliás, taí um lugar onde provavelmente estará o professor Abe e sua narrativa daqui a alguns anos.

Abe chega à nova universidade de onde veio transferido cheio de lendas a seu respeito, e caberá aos poucos personagens que gravitarão a seu redor comprovar tais histórias, por vezes de forma acidental. O personagem parece o espectro de um homem: metódico e inteligentíssimo, está tranquilo na posição desesperadora que escolheu pra si: gordo, impotente, desanimado, paralisado. Apesar de tudo, Abe parece ter abraçado o desânimo e vive relativamente bem com sua depressão, que o impede inclusive de terminar um livro, além de ter drenado qualquer entusiasmo aparente. Allen e Darius Khondji filmam esses primeiros passos de seu protagonista em cena de forma praticamente enclausurada, quadrada e sem arroubo. Jill é a aluna que vem abrir a paleta de cores do filme e da vida de Abe, movendo a bela luz exterior dos cenários naturais para dentro dele, percebendo a mudança no mestre sem saber que nada tem a ver com o sorriso que abriu, com a esperteza do clareamento do figurino e com a 'joie du vivre' que o antes soturno homem agora apresenta. Pelo bem da apreciação da bela narrativa, nada além disso permito abrir (mesmo que provavelmente outros sites e periódicos não se importem com tal).

O que fica claro pra mim e pra Allen é que Abe é, acima de qualquer questão sobre sua racionalidade, um homem que escolheu conscientemente cada etapa do que observamos durante a projeção. E tudo foi feito sempre com entrega e paixão, do abismo escuro onde está nos primeiros minutos até a alegria constante que adquire ao se descobrir invencível, incluindo o desfecho que ele igualmente (e literalmente) abraça com entrega e certeza, Abe é um homem pleno do início ao fim da projeção. E Allen conta com uma interpretação sutilissima do genial Joaquin Phoenix para nortear seu filme, mesmo que se esperasse mais intensidade de um personagem tão rico quanto Abe; a verdade é que até podemos lamentar um arrebatamento, mas não dá pra discordar da escolha de um ator tão complexo, visceral e inteiro. Ao seu lado, Emma Stone e Parker Posey igualmente brilham no que talvez seja o mais conciso elenco de Allen, e a primeira consegue da metade pro final toda a mistura de doçura, curiosidade e ímpeto que faltou a Scarlett Johansson no malfadado Scoop. E enquanto Phoenix explode em cores com o avanço da trama, o contrário acontece a ela, que perde a leveza e se fecha em movimentos cada vez mais secos e monocromáticos.

O fraco desenvolvimento do personagem do namorado de Jill (vivido por Jamie Blackley) é um dos raros pontos baixos de um filme que parece bem mais simples do que na verdade é; mais um belo estudo de personagem recheado de um conto moral de desenganos e errôneas impressões do quão equivocadas podem ser nossas visões sobre atos, que na maioria dos casos só conseguem ser totalmente visualizados quando se consegue afastar os aspectos emocionais inerentes a interrelações. Mais uma bola dentro de um homem que só se mostra cada vez mais aguçado observador da alma e dos dilemas humanos, ao menos uma vez a cada dois filmes.

Comentários (4)

Renato Coelho | sábado, 22 de Agosto de 2015 - 22:59

Woody Allen no comando? Mais um filme morto!!!

Alexandre Koball | terça-feira, 25 de Agosto de 2015 - 12:32

O homem não cansa, fantástico!

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