Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Uma comédia que espanta a pasmaceira e discute de maneira menos rebuscada algumas questões filosóficas sobre as quais muitos de nós tem preguiça de pensar.

10,0

Discussões sobre qual a verdadeira vocação do cinema - arte ou entretenimento? - já se perderam num universo de partículas elementares e hoje é possível admitir que ele (o cinema) possa servir a várias coisas, inclusive à arte e ao entretenimento. Quando vemos o argumento de Huckabees – A Vida É Uma Comédia isso fica um tantinho mais claro, pois que David O. Russel (que também é diretor) e Jeff Baena (co-roteirista) conseguiram dar um corpo leve a uma história pesada. Esse corpo leve ao qual me refiro é formado pelo conjunto que envolve a trilha sonora de Jon Brion, (responsável também pela trilha de Magnólia e Sinédoque, Nova Iorque), passando pela escolha da cartela de cores, até a maneira como o roteiro transforma as questões de Albert Markovski (Jason Schwartzman) em coisas cotidianas. Esses pontos dizem respeito à arte do filme, ao passo que a escolha da comédia traz a dose de entretenimento que precisamos para assisti-lo do começo ao fim.

O título faz referência a uma loja de departamentos cujo slogan é – numa tradução grosseira – “A loja que tem tudo”. E ao mesmo tempo em que O. Russel utiliza essa metáfora para tratar a vida como uma loja de departamentos, ele ajuda a desconstruir o mito de que a verdadeira maldade dos nossos tempos esteja ligada à existência dos shoppings centers e não às nossas escolhas. Assim é que Markovski se vê intrigado com o coincidente reencontro com um homem, que por acaso é africano, e que ele desconhece, mas a quem julga responsável pelos problemas atuais de sua vida. Numa outra coincidência, ao tomar emprestado um terno, Markovski encontra em seu bolso o cartão de visitas de Vivian (Lily Tomlin) que se apresenta como “detetive existencial”. Em busca de alguma paz de espírito, ele vai até o escritório da detetive saber como essa coisa toda funciona (e se funciona). E aqui cabe um parêntese para ligar o consultório de Vivian e Bernard (Dustin Hoffman) à Lacuna Inc. de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças pela absurdez dos tratamentos que propõem.

Depois de contar o que ele acredita ser seu problema (the african guy), os detetives aos poucos vão inserindo-o no programa de tratamento existencial, uma pajelança de várias teorias entre psicologia, física quântica e bom senso e Bernard nos premia com a explicação sobre a “grande manta” e digamos que isso seja bastante sensato porque estamos mesmo todos interligados: nós, a torre eiffel e um hambúrguer.

Desconstruindo várias certezas, algumas fílmicas e outras do senso comum, vemos a modelo Huckabees (Naomi Watts) decretando estar cansada de precisar estar sempre bonita; vemos a filósofa niilista francesa (Isabelle Huppert) confundindo todo mundo para poder esclarecer e se esclarecer; o African Guy (ator cujo nome não consegui encontrar) querendo apenas se enquadrar e viver bem; o bombeiro confuso (Mark Wahlberg) descobrir a força do amor em meio a um mundo que ele acreditava sem verdade alguma e os próprios detetives sendo expiados pelo paciente.

Na dúvida cruel de Markovski sobre continuar tentando salvar ao menos uma pedra dessa avalanche confusa de interesses que chamamos vida, ele percebe em seu arqui-rival, um duplo seu, um contrário absoluto de sua imagem: o executivo da loja, Brad Stand (Jude Law). Bonito, bem articulado, rico e namorado da modelo, Brad é tudo que Markovski gostaria de ser e ao mesmo tempo dono das mesmas confusões que o assombram. A cena da libertação do personagem de Schwartzman é também a mais emblemática: depois de sabotar a vida de Brad e vê-lo destruído como ele se sentia, Markovski enxerga na foto instantânea do choro inimigo o seu próprio rosto remontado. Enfim a paz de espírito floresce.

Até na escolha do elenco que mistura atores consagrados como Dustin Hoffman e Isabelle Huppert a nomes reconhecidos apenas por atuações em blockbusters como Mark Wahlberg, e associando trilha sonora original com Shania Twain e Beethoven, David O. Russel ensina que todos somos partes respeitáveis de uma manta que cobre mais espaço e tempo do que nossos olhos possam enxergar. E parafraseando o sempre parafraseado Marshall MacLuhan, neste filme o meio foi a massagem.

E como última mensagem (tema de reflexão, quem sabe?) copio Albert Markovski, o personagem:

Nobody sits like this rock sits. You rock, rock . The rock just sits and is. You show us how to just sit here, and that's what we need.

Comentários (0)

Faça login para comentar.