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Críticas

Cineplayers

Explode coração.

5,0
Café com Canela explodiu há exato 1 ano atrás, nesse mesmo Festival de Brasília. De lá pra cá, uma virada radical mudou a vida dos baianos Ary Rosa e Glenda Nicacio com a enxurrada de elogios, prêmios e a estreia mês passado. Uma fala constante a todos é como, independente do resultado final, o filme que saiu do festival passado com o prêmio de júri popular transbordava afeto. Essa palavra é uma mola para Ary e Glenda, que giraram seu filme anterior num enorme coração pulsante, e o fato dele ser tão conciliador em sua narrativa, tão próximo e humano, criou uma barreira emocional a abraçar a produção; entendo e confirmo esse caráter. O novo Ilha me bate, antes de tudo, com a certeza de que talvez um ano seja pouco para realizar um filme. Em algumas circunstâncias, não apenas a maturação do próprio projeto seja necessária, como também uma compreensão nossa. Do realizador, do crítico e do público. Acho.

Dito isso, essa querência particular por um tempo que não veio, creio que Ilha me frustre particularmente. No sentido de ver a necessidade de um registro diferente sobre uma obra que é essencialmente diferente, e de não absorver uma evolução dos trabalhos, que acredito ser uma expectativa. Esse projeto abre forte e grande, tem caminhos bem menos óbvios e muito mais arriscados na luz que joga sobre a própria realização, mas tenho dúvidas se existia uma maturidade para a feitura desse filme exatamente na potência que ele prometia ter, a partir do que ele mesmo elabora. Sua descrição e abertura nos apresenta um registro de metalinguagem que será perseguido pelo filme, e que tem um caráter provocador que é bancado e alcançado nos primeiros 15 minutos, tempo de duração das três primeiras cenas. Assimilado e findado esse primeiro ato, o filme passa a se arriscar mais e 'seu volante' parece ter um sentido mais frágil a partir daí.

No primeiro ato, a força imagética e de proposta nos remete a uma evolução. A primeira cena é sobre violência e reação a ela, e nessa cena se constrói a narrativa metalinguística do longa. Ali já encontramos Thacle pela primeira vez, talvez seja Thacle o grande personagem do filme pra mim. Thacle é o elo que une todos, provém a imagem, é cúmplice do espectador, promove o debate, e encerra a jornada dos dois heróis em cena, amarrando suas trajetórias no final. Na segunda cena, um plano aberto onde vemos um mangue sendo burilado por caçadoras de caranguejos, estão Emerson e Henrique ao longe; ali começa a ser estabelecido a dinâmica do encontro. A aceitação ainda não chegou, mas já temos o entendimento. A terceira cena é um plano de uma estrada, desabalada carreira, fuga, força, falta de estabilidade, impacto. Um trio de sequências nunca menos que poderoso.

A partir dessas cenas, no entanto, Ilha começa a fazer escolhas arriscadas que não resultam em fins ordenados. No caminho de transferir a própria linguagem do cinema para a tela, ele passa a verbalizar as técnicas utilizadas enquanto as comete, o que pode soar como fina ironia no texto mas que não cai bem na tela. Quando o filme se preocupa em refletir as relações que nascem da violência cotidiana que cometemos a outrem e em como essas relações podem se transformar quando há laços afins, o filme se enriquece. Ary e Glenda têm um coração transbordante e ele facilmente se encontra em seus planos mais carinhosos e/ou poéticos, como quando Emerson realiza uma performance de dança dentro de uma casa abandonada, ou quando Henrique canta Clube da Esquina 2 emocionado (embora o super close da cena incomode), ou no belíssimo enquadramento em que os diretores parceiros conversam sobre quando um deles cometeu um crime. Eles se refinaram imageticamente e isso é visto com clareza.

O mesmo infelizmente não aconteceu com os diálogos, que soam artificiais e empolados, criando uma fricção curiosa: nas cenas onde se abre mão da dialética e suas intenções parecem mais artisticas (inclusive em uma das mais criativas e bonitas cenas de sexo recente), o filme soa natural; quando o contexto do filme pedia coloquialidade, o artificialismo parece não abrir brecha para a organicidade chegar, acontece uma ruptura e o filme segue como se estivesse mancando. Algumas inexplicáveis aparições da típica personagem-oráculo soam igualmente forçadas, em pequenos monólogos muito fora de to,m e também criam novas ranhuras no filme, que caminha para um final "surpresa" que vinha sendo desenhado até então, conquistando o público em busca de catarse.

Ary e Glenda parecem ter encontrado uma ideia de cinema afetivo que o público parecia estar pronto para abraçar. Que eles continuem tentando soprar essa mistura simbiótica de querer bem ao cinema mais livre possível é uma aposta que já percebe como escolha, quase um lema. Nas imperfeições costumam brotar as mais belas conexões emocionais, e a dupla mineiro-baiana segue com esse cinema do Recôncavo cheio de texturas a se fazer notar. 

Filme visto no Festival de Cinema de Brasília

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