Ao discorrer sobre A Ilha dos Milharais, corremos o risco de influir na experiência e compreensão do espectador que ainda não o assistiu. Isso acontece por pura subjetividade, já que há diferentes maneiras de interagirmos com essa obra. Evidentemente isso também pode acontecer com qualquer outro filme, mas nesse aqui a experimentação projetiva é diferenciada, tem sua particularidade e sua mágica através de seu tempo e de seus ciclos particulares. As cenas dialogam, complementam os diálogos raros, revelam uma família composta unicamente por um avô e sua neta. Eles estão ilhados, ilhados frente à rotina inanimada dos anos e frente a uma guerra que não é deles. É importante que quem o assista se sensibilize segundo suas próprias convicções. O filme não é dos mais fáceis, é cadenciado em seu tempo que aqui aturde. Tudo é passageiro e mínimo, e o mínimo é abundante.
Me apropriarei de um trecho da sinopse para contextualizar: “o rio Enguri forma a fronteira entre a Geórgia e a República separatista da Abecásia. Toda primavera, o rio leva o solo fértil do Cáucaso até as planícies da Abecásia e do noroeste da Geórgia, criando pequenas ilhas, pequenas terras de ninguém.” É nesse solo emergente que a história se planta e por ali se cultiva, da mesma maneira que seus personagens transformam-se em diferentes formas de progressão. Num ato inicial, observamos um velho (Ilyas Salman) encontrando esse solo no meio do rio. Para lá ele leva madeiras e ergue um barraco. Assistimos ao passo a passo de sua construção, acompanhando através da câmera em movimento e pela montagem retilínea a edificação do que lhe é anualmente habitual. Sua neta o acompanha. Eles edificam um minúsculo espaço, plantam os milharais, o cultivam e observam seu crescimento para finalmente colhê-los e após irem embora com o sustento do inverno. Basicamente o filme é resolvido por imagens e dentro delas residem as particularidades que poderão ser incomumente compreendidas.
As imagens pausadas tem função de contemplação. Geralmente planos abertos desvelam o espaço tempo que se confunde nesse meio em que trabalho é progresso, faça chuva ou faça sol. A natureza em volta dá beleza às margens do rio, os sons diegéticos locais favorecem a ambientação e as ações rotineiras carentes de diálogos nos colocam como testemunhas da semeadura que implica diretamente na transformação da menina, uma adolescente percebendo mudanças em seu corpo e em seus interesses. São várias as alegorias: a gota de sangue que mancha o solo, o mergulho sob o luar, o nascimento das primeiras folhas após o trabalhoso plantio e a boneca que, de um simples brinquedo, converte-se num enfeite de parede. O diretor georgiano George Ovashvili investe na imagem enquanto narração visual que dá conta de quase todo o filme. Seu interesse por esse atributo se dá na observação de seus personagens que constatam a geografia local nas ameaças desta terra sem dono que tem visitas indesejadas.
Seus personagens vivem o contexto da necessidade por terra. Eles não agem, sofrem as ações das mudanças e da guerra que explodiu no início dos anos 90. Nesse sentido, valeria uma sessão dupla com o competente Mandariinid (idem, 2013). Notem que o vislumbre da beleza local sofre com as constantes travessias de barcos dos militares de ambos os lados, fazendo com que o temor reine naquele curto espaço ilhado que fica cada vez menor a medida que os milharais avolumam. Quando questionado pelos militares de ambos os lados, o velho praticamente limita-se a responder com gestos. Sua neta, igualmente oprimida, acompanha essa noção de receio. Algo, então, altera a rotina. Influi radicalmente nos símbolos visuais e dá uma entonação ainda mais profunda dentro da dinâmica de relações, especialmente ao amadurecimento da garota que tanto observa o entorno. Diálogos pontuais fundamentam a trama; estes são breves e esboçam o sentido de vivência e de idealizações por mudanças: a oportunidade de estudo da menina, por exemplo. Alinhado com aspectos naturais inevitáveis, o final igualmente simbólico significa uma ação natural e arrebatadora de quem, naturalmente, origina-se do mesmo lugar em que um dia irá morrer.
Excelente texto, Marcelo!
Não é um filme fácil de analisar, com tantos simbolismos e silêncios, mas é puro Cinema: um recorte temporal e espacial narrado sobretudo por imagens e sons.
Um dos grandes da temporada por todas as reflexões que pode suscitar.