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Críticas

Cineplayers

Uma elegia à memória de Ingmar Bergman.

8,5

Enxergar um filme em outro sempre me foi uma experiência desagradável. Como as horas em que passei assistindo a O Curioso Caso de Benjamin Button falando sobre sua vida, e a certeza de que o filme com Brad Pitt mais parecia uma cria de Forrest Gump - O Contador de Histórias pairava no ar. Essa experiência se difere de perceber ecos de um diretor num filme de algum de seus pupilos, que realizam seus trabalhos de forma livre e madura, ainda que carregado da influência de um mestre. Esse é o caso de Liv Ullmann e seu Infiel, cujo roteiro foi escrito pelo saudoso e inesquecível Ingmar Bergman.

A densidade da narrativa e o tema conjugal remetem o espectador de imediato a Cenas de um Casamento, do diretor sueco, que compartilha com Infiel a atuação de Erland Josephson ao lado de Liv Ullmann. O prefácio do filme de Ullmann serve para dar o tom da narrativa, com um pensamento de Strauss que afirma: “Nenhum fracasso marca o inconsciente mais cruel e profundamente que um divórcio. Ele penetra no centro de toda a angústia, fazendo-a aflorar. Fere mais fundo do que a vida jamais conseguiria.”

O cinema americano não reproduz rostos e ações de pessoas comuns. Foi o que observou Woody Allen à época do projeto que deu origem ao felliniano Memórias. Eles criam personagens míticos, charmosos, vivendo situações fantásticas e seus intérpretes permanecem no imaginário coletivo. Essa idéia é diametralmente oposta ao cinema de diretores admirados por Allen, como Fellini e Bergman, que criam personagens que antes de serem sensíveis e profundos, são donos de feições comuns e aparentam ser de carne e osso como qualquer um de nós que esteja na platéia, dando origem a uma viagem rumo ao interior humano que pouco tem de sedutor, mas responsável por conseqüências como a tristeza e o embrutecimento, no caminho da auto-descoberta.

Em Infiel, a dor avança por sobre os frames e permanece ao fim do filme graças ao comprometimento bergmaniano com o realismo, ao observarmos que o autor que conjura a personagem Marianne também se chama Bergman, guarda na gaveta de sua escrivaninha a foto de uma menina que muito se parece com a filha da protagonista, única personagem pura da película. Segundo dizem, Bergman enfrentou em certo momento da vida algo como o enfrentado pelo personagem David ao se envolver com uma mulher casada passando por uma disputa pela custódia da filha, e assim como em Closer - Perto Demais, de Mike Nichols, o ex-marido propõe uma última noite de sexo como condição para deixá-la em paz. Numa sequência que traz à lembrança a cena entre Clive Owen e Julia Roberts, David interpela e ofende Marianne enquanto ela se vê obrigada a relatar com detalhes o sexo com Markus, incluindo o orgasmo a que se sentiu obrigada a atingir.

Poucos filmes são capazes causar comoção através de sua sinceridade e teor pungente, características que são parte do legado de Ingmar Bergman ao mundo do cinema, e só por isso já me sinto grata à Liv Ulmann pela direção delicada, sensibilidade apurada e fidelidade ao artista, homem e mentor que foi Bergman. Que por muitos anos sirva de elegia à memória do diretor. 

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