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Críticas

Cineplayers

You and I Have Memories.

8,0

Em meio ao turbilhão de emoções e ao cansaço que a maratona de Cannes impõe ao corpo e à mente, um filme como Restless é uma espécie de aconchego para a alma, tanto do ponto de vista cinematográfico – pois é cada vez mais raro vermos na tela uma narrativa tão límpida e bem resolvida - quanto do ponto de vista do espírito mesmo – pois parece difícil sair da cena final deste novo filme de Gus Van Sant sem ser tocado por sua profunda e singela beleza.

O filme começa ao som de Two of Us, das mais simples e belas baladas dos Beatles, composta muito perto do fim da banda, e que traz consigo essa ambivalência: é uma canção alegre, leve, harmoniosa, mas também algo melancólica. Cantada num dueto Lennon/McCartney particularmente inspirado, como que trazendo em si a plenitude do durante e a inevitabilidade do fim: uma despedida implícita, uma celebração já saudosa - e nem por isso menos plena.

Temos aqui a história dos jovens Enoch e Anabelle, ambos imersos em tragédias pessoais: ele perdeu os pais em um acidente de carro, ela tem câncer em fase terminal, lhe restando apenas três meses de vida. Uma história de um amor destinada a um fim trágico, pois. A rigor, mais uma versão de Romeu e Julieta que, se nada tem de novo em sua estrutura dramatúrgica básica, apenas reafirma a centralidade da mise-en-scéne como forma de estabelecer a poesia da duração, a eternidade que se constrói no balé que coloca os corpos em contato entre si próprios e com o espaço que circundam.

Não é por outro motivo que os clichês funcionam tão bem para alguns diretores e são o calvário para outros: lembremos, por exemplo, da beleza límpida da obra-prima que é História Real (The Straight Story, 1999), de David Lynch, onde cada elemento (de diálogo, enquadramento, música, o que quer que seja) somente vem reforçar a inteireza da fábula.  Em Restless a sensação é semelhante: somos inteiramente envolvidos no universo dos personagens, que ganha aconchego na encenação tranqüila, no delicioso 4:3 com o qual Van Sant os acolhe. 

Aliás, se citamos Lynch, é curioso notar como vários nomes dessa geração a qual Gus Van Sant faz parte (os independentes do cinema dos EUA nos anos 1980) têm em comum a característica de passearem com enorme desenvoltura entre projetos de origem e pegada claramente mais pessoal e outros aparentemente mais genéricos, mas se observados com cuidado também constituidores de todo um universo de singularidades e potências muitas vezes negligenciadas porque menos óbvias. Mas isso fica para outra hora. Por agora, a sensação deliciosa de ver um diretor como Gus Van Sant, que outrora vencera a Palma de Ouro com um filme como Elefante (Elephant, 2001), emocionar meia sala Debussy com esse Restless, ao som de Beatles e Nico, reafirmando o que sabemos e que o cinema – essa arte do tempo - felizmente volta e meia reforça: que, se o fim é algo inevitável, a memória é uma forma de eternidade.

Visto no Festival de Cannes 2011.

Comentários (1)

Marcus Almeida | sexta-feira, 25 de Novembro de 2011 - 16:10

Não lembrava que a nota dele era tão alta.

E Elefante é de 2003.

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