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Críticas

Cineplayers

Sobre limites e ciladas.

1,0

Sempre me atraíram os filmes que, deliberadamente, amarram a si mesmos. Acredito haver aí uma bela entrega à inexorável condição do cinema de ser uma arte de limitação, onde aquela ideia de autor, ser mítico triunfante sobre a indústria e o sistema, debate-se debilmente para sobreviver. Essa tem sido a habilidade fundamental do cineasta na concepção de gênero americana: transpor limites para conservar, na medida do possível, a unicidade do olhar. A criatividade é matéria fluxível, definida não pela liberdade absoluta, mas pelos limites que se interpõem entre a imaginação que a tudo se permite e a realidade que tudo governa. É ao contemplar a impossibilidade do fazer que o cineasta se força a inventar alternativas.

O primeiro limite que A Inquilina (The Resident, 2011) se impõe é o físico, filmar-se quase que inteiro em um mesmo ambiente. Há poucos dias falei do terror uruguaio A Casa (La Casa Muda, 2010) e de como o gênero oferece por natureza um aparato funcionante quando os recursos são limitados. Das mais brandas (o suspense) às mais extremas (o gore), as formas tomadas pelo medo parecem sempre se limarem pela circunscrição do espaço em que se acomodam. Mesmo filmes que pressupõem uma ilimitude, como o idílico O Mensageiro do Diabo (The Night of the Hunter, 1955), instauram o medo em uma ideia de restrição, ou restrição aparente (uma casa, um celeiro, o breu absoluto da noite como aspecto limitador). Parece haver essa ilusão de encerramento, de quatro paredes, para garantir um componente fundamental à tensão: a impossibilidade da fuga e a solidão diante do perigo, aos quais o espaço aberto, diáfano e infinito, parece servir de mero corredor entre um quarto fechado e outro. É a limitação do espaço o êmbolo elementar para o medo do cinema.

Sendo assim, é também, como já dito, habilidade essencial do cineasta virar-se dentro desse perímetro. Quando filmou Schock (idem, 1977), Bava sintetizou em poucos 90 minutos a mais pura substância do horror criado e desenvolvido entre limites perversamente estreitos. O mesmo ocorre com Barilli em O Perfume da Dama de Negro (Il Profumo Della Signora in Nero, 1974) e Pensione Paura (idem, 1977), com Polanski em O Bebê de Rosemary (Rosemary's Baby, 1968), com Fulci em A Casa do Cemitério (Quella villa accanto al cimitero, 1981), com Martino em Torso (I Corpi presentano tracce di violenza carnale, 1973), com Argento em Suspíria (Suspiria, 1977), com Clayton em Os Inocentes (The Innocents, 1961), Siodmak em No Silêncio das Trevas (The Spiral Staircase, 1945) Kubrick em O Iluminado (The Shining, 1980), e mais um sem-número que o tempo e a memória não permitem citar.

É cercado que o grande se agiganta e o pequeno desaparece. Antti Jokinen é um diretor de propaganda e videoclipe, então, por mais que se conceda uma atenção nua e pueril no início, A Inquilina ser um filme inútil não surpreende - o estranho é exatamente a iniciativa pela imposição de um limite quando não haveria essa necessidade (como no caso de A Casa e Schock, estrangulados pelo orçamento, fator de força maior). A quem pôde, durante toda a carreira, servir-se do livre número de grafismos e cortes secos e raccords para os quais a câmera é na verdade acessório, estrear em um longa como A Inquilina é tirar as muletas de um aleijado e mandá-lo correr morro abaixo.

O objeto de A Inquilina é a ameaça, o perigo iminente. Ponto. Se isto não funcionar, o filme não funciona. Jokinen tem duas bases para trabalhar essa atmosfera: a imagem pura e simples e uma concepção de narrativa. Erra nas duas. Na primeira, simplesmente porque falta um cacoete de cineasta para quebrar as limitações impostas, para dançar com a câmera pelos cômodos, para compor um quadro de força que realmente inspire a ansiedade por uma presença que é apenas sugerida. Para o segundo aspecto não há perdão, as decisões tomadas sabotam o filme.

O maior erro de Jokinen, a segunda principal limitação de A Inquilina, é pousar sua lente sobre o vértice errado da narrativa, talvez por uma má interpretação do conceito de voyeurismo no cinema, matéria-prima tão bem explorada nesses pouco mais de cem anos. A inversão de papéis não é em si algo ruim (nada “em si” o é, afinal), mas o resultado aparenta ser mais incidental do que deliberado. Em sua primeira meia hora, A Inquilina acompanha sua personagem-título, a bela mulher solitária - protagonista clássica do suspense americano -, introduzindo-nos por meio dela ao apartamento (cenário do filme) e a seus personagens. Normal. Ao entrar em seu segundo terço, porém, Jokinen promove uma mudança de perspectiva (por meio de um flashback ridículo, aliás).

A câmera abandona a personagem de Swank e passeia com Dean Morgan em cada uma de suas obsessões. O efeito disso é teoricamente interessante: não se teme mais pela personagem de Swank e pelos perigos que alguém à espreita pode lhe oferecer; teme-se agora é pelo próprio Dean Morgan, sempre na iminência de ser flagrado no interior do apartamento. A cena em que ele se deita debaixo da cama enquanto ela dorme é o momento mais bem-sucedido em termos de efeitos próprios de um suspense que A Inquilina consegue alcançar, ou seja, a tensão age não sobre a vítima, mas sobre seu agressor.

Apesar de ser uma válida inversão dos arquétipos do gênero, Jokinen arranja para si uma missão que não consegue cumprir: mudar os papéis para a posição original e recolocar o espectador com sucesso ao lado de Swank, porque a ideia de suspense volta à sua concepção básica: o vilão que ameaça o protagonista e a tensão que se extrai da dinâmica. Esse choque é matéria própria do ato final de um suspense, quando, naturalmente, deve haver esse compromisso, esse enlace entre início e fim: o centro de A Inquilina que começou sobre Swank, que passou para Dean Morgan e que precisa voltar com Swank, caso contrário, o espectador se sentirá traído. É, assim como a restrição espacial citada no topo do texto, uma restrição narrativa.

Se grandes diretores inventam grandes filmes de um material aparentemente estéril e com uma pobreza quase irremediável de recursos (sempre me lembro de Mario Bava em O Chicote e o Corpo [La frusta e il corpo, 1963]), ou torcem e fraturam a narrativa brincando com o público como bem entendem (neste caso exemplos demais me vem à cabeça), parece inevitável constatar aí uma terceira (a mais óbvia) restrição, referente mesmo e simplesmente à competência de um diretor estreante. A Inquilina nada mais é que um grande problema cuja solução está muito além da capacidade de Antti Jokinen.

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