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Críticas

Cineplayers

Personagens reais criam um filme impactante e difícil de esquecer.

7,5

Depois de descobrir ter uma doença misteriosa que faz seu corpo destruir seus glóbulos brancos, Thomas procura não seu pai ou sua mãe para ajudá-lo no tratamento, mas seu irmão gay Luc, que há anos não via e com quem nunca teve um bom relacionamento. Estamos nos anos 80, a AIDS ainda não era plenamente conhecida e a homossexualidade estava longe de ter a ainda pouca, mas já considerável, aceitação que tem hoje. Estamos portanto frente a dois irmãos que sofrem preconceito diversos. 

O filme é Irmãos (Son Frère, 2003), que o cineasta francês Patrice Chéreau filmou com a habitual secura e objetividade, câmera na mão e cortes secos, sem um pingo de sentimentalismo. Trata-se de uma obra dura, de diálogos cortantes, ausente de clichês ou de facilidades do roteiro, vencedora do Urso de Prata de melhor filme no Festival de Berlim.

Grande encenador teatral, um dos mais badalados diretores de ópera da atualidade (sua versão integral das tetralogia de O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner, regida pelo conterrâneo Pierre Boulez, é considerada antológica e disponível em DVD até no Brasil) Chéreau começou sua carreira com pé direito ao levar para as telas a matança da Noite de São Bartolomeu, que mudou o destino da França, no multi-premiado e sucesso de público A Rainha Margot, Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes – pessoalmente, acho o filme confuso e sem foco, mas sou minoria.

Chéreau nunca mais voltou aos épicos e aos grandes filmes. No cinema, faz filmes intimistas, todos, rigorosamente todos, de temática contemporânea, geralmente feita por jovens talentosos e até então desconhecidos, que o diretor ajuda a iluminar tanto a obra quanto a carreira. Ou seja, no seu novo meio, que domina espetacularmente bem, prefere a intimidade, a câmera próxima do rosto de seus atores, na maioria das vezes muito bem dirigidos, sem a grandiosismo que marca sua passagem pelas grandes salas de concerto do mundo – Intimidade é inclusive o título de um de seus filmes, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim, dois anos antes de vencer a segunda colocação, o Urso de Prata, por Irmãos. 

Chéreau não atinge em Son Frère a excelência de Intimacy (sim, ele filma também em inglês), mas isso nem interessa muito. Sua sensível entrega a novos temas, a maneira sem pudores com que encena as mais mesquinhas e baixas qualidades dos seres humanos, seu entendimento magnânimo do que seja arte compensa as eventuais falhas, que talvez nem seja dele – em Irmãos, o tema é sem dúvida alguma subdesenvolvido.

Thomas, o irmão aidético, tem uma namorada que dá no pé depois que descobre a doença do então amado. Luc tem um namorado, mas o relacionamento não deslancha – ele tem problemas em aceitar sua sexualidade. Os pais não se entendem e toda vez que chegam ao hospital é briga na certa. A médica responsável não sabe o suficiente para garantir um bom tratamento e sua insegurança arruína ainda mais a frágil família, enquanto enfermeiros demonstram sua insensibilidade frente ao sofrimento alheio.

Chéreau sabe que cinema é imagem e poupa o espectador de muito falatório (uma raridade em se tratando de filmes franceses). Assim ele mostra o sofrimento em detalhadas cenas de coleta de sangue e preparação para as cirurgias, em especial uma longuíssima, interminável, abominável cena em que duas enfermeiras depilam todo o corpo do paciente para a quimioterapia.

Sim, Thomas é homofóbico. O namorado de Luc tenta se aproximar da família, mas Luc entra em pânico, talvez receoso de se mostrar para todos – e rompe a relação – em meio a ríspidas conversas entre os irmãos, que parecem nunca se entender. Luc é o único que cuida de Thomas com algum carinho. Sim, Luc é um ressentido por tudo que aconteceu com ele. Não há salvação, nem na morte, e o ciclo de ressentimento não termina.

Tudo é pequeno, tudo é visto de muito perto – Chéreau filma quase todos com nu frontal e as cenas não poderiam ser mais significativas. O diretor faz ainda uma grande cena: um dos pacientes do hospital, com medo de mais uma operação, percorre inutilmente os corredores fugindo do inevitável. É quando Luc o abraça – e é rejeitado. Para o irmão, mesmo com toda a prestatividade em cuidar dele, não há, nunca haverá, a mesma dimensão de que com aquele desconhecido.

Eis a grande força do cinema de Patrice Chéreau. Seus filmes são tão honestos, que aqueles personagens todos parecem ser nossos parentes próximos. Sofremos com eles, e com isso fica difícil esquecer as impactantes imagens desse filme sincero e íntimo.

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