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Deerskin: A Jaqueta de Couro de Cervo

(Daim, Le, 2019)
6,5
Média
3 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Estilo matador

9,0

A França é um dos berços fundamentais do cinema. Desde sua mais absoluta gênese, com as invenções de Ampère e dos Lumière. Suas escolas de vanguarda, seu realismo poético, a nouvelle vague e todos os movimentos e autores posteriores sedimentaram a tradição de uma cinematografia ao mesmo tempo diversa e repleta de signos próprios, além de conservar grande qualidade. A explosão da indústria francesa nos últimos anos fez isso se perder um tanto, a ponto de alguém do tamanho de Eugène Green acusar as centenas de filmes lançados pelo país anualmente de serem feitos em um software de computador; a produção em massa teria mitigado o esmero, o artesanato, a singularidade.

A análise é urgente e precisa. Mas, contraditoriamente, essa mesma cena contemporânea permite a existência de alguém absolutamente à margem tanto dessa chancela de mercado homogeneizadora, como do ideário tradicional do cinema francês: Quentin Dupieux, contraponto rebelde nascido (e cultuado) nas entranhas da criação independente. Seja na música, ramo em que não tem o menor pudor de dizer que produz alheio a bases teóricas e de forma absolutamente aleatória. Seja no cinema, motivo de chacota em seu mais novo projeto: A Jaqueta de Couro de Cervo (Le Daim, 2019), que é tão bom quanto um filme com esse título pode ser — ou seja, maravilhoso.

As principais marcas autorais do cinema cômico de Quentin Dupieux — bem definidas em sua obra seminal e mais famosa, Rubber, O Pneu Assassino (Rubber, 2010) — estão todas presentes em A Jaqueta de Couro de Cervo: o humor nonsense, sua combinação com uma violência desmedida, a personificação de objetos inanimados, a farsa como base do texto e das interpretações. Em suma, o absurdo é o ponto de partida e o objetivo final é a comédia, ou vice-versa. E essa receita do caos surge aqui mais bem formatada do que nunca, se é que se pode usar qualquer termo que remeta a regras ao se referir a Depieux. Quer dizer: a essência revolta do cineasta parisiense segue intacta, mas o filme como um todo é aquele em que suas ideias estão mais bem amarradas e condensadas. O roteiro, de 70 minutos cirúrgicos, é excelente.

Assim também é a colaboração improvável do comediante independente com Jean Dujardin. Quentin Dupieux transforma o galã famoso pelo filme O Artista (The Artist, 2011) num astro ocasional do “terrir” —  um surpreendente Bruce Campbell do cinema francês. O que, no fim das contas, exalta uma qualidade pouco reconhecida de Dupieux como diretor de atores, haja vista que todo mundo em seus filmes atua em sua singular chave cômica. O elenco ainda conta com Adèle Haenel, atriz que desponta como uma das mais prolíficas da atualidade (com filmes como A Garota Desconhecida, 120 Batimentos por Minuto, A Revolução em Paris e Retrato de uma Jovem em Chamas) e faz uma ótima dupla com Dujardin como a sagaz garçonete-cinéfila-cineasta Denise.

Jean Dujardin vive Georges, um homem recém-divorciado que foge para uma cidade no interior obcecado por uma jaqueta de couro de cervo — e por, assim, se tornar um homem mais homem, “estilo matador”. Conforme essa neurose escala, Depieux nem esconde a intenção de parodiar Psicose (Psycho, 1960), e aproveita essa referência clássica para além do tom ridículo do filme; A Jaqueta de Couro de Cervo ganha atmosfera, explorando a paisagem bucólica e gélida dos Pirenéus Atlânticos de forma extremamente imersiva, ainda que simples, vide a óbvia trilha sonora de suspense e uma fotografia meio “lavada” que remonta a filmes europeus de mistério. Em dado momento, aliás, o cineasta (que também assina a direção de fotografia) capricha em compor um plano conjunto fechadíssimo do canto da estreita escada do hotel em que Georges se hospeda, reunindo o ameaçador caminhar do protagonista enquanto sobe para o quarto, o andar de cima e o de baixo, onde vemos as reações de um recepcionista deliciosamente estúpido, em um rico mesmo quadro.

Desse modo, Quentin Depieux faz de seu novo longa-metragem uma experiência cativante de diversas maneiras: por sua comédia ímpar e idiota (e, para quem gosta, genial); por um ar familiar de suspense que mais que envolve, abraça o espectador; por cenas de ação e gore que concretizam de forma maravilhosa as suas ideias malucas; e por, além de tudo, fazer várias críticas bem-humoradas à sua própria arte, à produção cinematográfica independente, às interpretações pomposas de críticos a obras simplórias e às possíveis respostas cínicas de realizadores frente a leituras tão mais interessantes que seus próprios filmes e intenções. A Jaqueta de Couro de Cervo é o Hermes e Renato da fase O Proxeneta, Tela Class e Sinhá Boça. E esse Depieux no auge desponta como um dos autores mais destacados da tradicional cinematografia de seu país em 2019 — tanto pela singularidade, como pela estrita qualidade do que faz.

Crítica da cobertura do 21º Festival do Rio

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