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Críticas

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No seu primeiro filme colorido, Fellini discute o universo feminino na figura de uma dona de casa que desconfia das infidelidades de seu marido

7,0

O espectador que tentar iniciar-se no universo dos filmes de Federico Fellini com o objetivo de neles encontrar uma trama, um enredo tradicional, uma história com começo meio e fim, já estará começando de forma equivocada. De um eficiente contador de histórias no início de sua carreira, Fellini passou a ser, a partir do início dos anos 60, um pintor de imagens em movimentos, muitas delas oníricas, recheadas de personagens bizarros, muitos deles tirados das suas recordações de infância, outros de seus próprios sonhos. De tão pessoal, quase sempre é tarefa das mais difíceis adentrar neste mundo todo particular – por vezes, desconfio se os próprios atores entendiam os objetivos do diretor em determinadas seqüências. Até porque, Fellini nunca realizou filmes com essa proposta de simplificar as coisas. A idéia sempre foi justamente essa: explicar o mínimo possível. E não limitar a imaginação de acordo com convenções pré-estabelecidas. Decifrar as fitas de Fellini deve ser a menor das preocupações.

 

Julieta dos Espíritos, lançado em 1965, faz parte dessa segunda fase da carreira do diretor. Na primeira, Fellini encontrava-se amarrado às tradições neo-realistas que ainda estavam em moda na Itália. Um de seus fundadores, já que colaborou no roteiro de Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, considerado o marco inicial do movimento, o cineasta passou para trás das câmeras em projetos que seguiam mais ou menos o mesmo estilo.  Duas de suas maiores obras, A Estrada da Vida (1954) e As Noites de Cabíria (1957), são desse período e o conteúdo é fortemente marcado pela temática social. A partir de A Doce Vida, no início dos anos 60, veio a ruptura. Com seu painel de uma Roma ambientada por uma burguesia vazia de espírito, que se esbaldava em orgias e festas noturnas, tudo isso sob os olhos de um jornalista (Marcello Mastroianni) que não vê sentido na sua profissão, no seu casamento, na sua vida, Fellini deu o primeiro passo para a guinada que viria dali em diante.

 

Interessante notar que essa alternância de estilo não se deu por acaso. Nos fins dos anos 50, o movimento neo-realista já perdera muito da sua força. Afinal de contas, não havia motivos para continuar discutindo os problemas sociais da Itália do pós-guerra, quando esta já havia acabado há mais de uma década. Na mesma Itália, dois diretores perceberem esta modificação de tendência, e e alteraram o enfoque das suas obras. O primeiro deles foi Luchino Visconti, outro dos fundadores do neo-realismo (para muitos, seu primeiro filme, Obsessão (1942), é o verdadeiro marco zero do movimento). Em meados dos anos 50, Visconti rompia com as tradições do gênero ao realizar obras sob um contexto mais operístico, como Sedução da Carne (1954) e Um Rosto na Noite (1957), adaptado do conto de Dostoievsky (para os interessados, o filme foi lançado em DVD no Brasil sob o título de Noites Brancas). O segundo foi Miguelangelo Antonioni, que introduzia nas suas fitas um forte conteúdo filosófico, em que os personagens vagavam em busca de uma explicação para os seus vazios existenciais. Essa sua característica atingiu a voltagem máxima no clássico A Aventura (1959), primeiro capítulo da sua teoria da incomunicabilidade.

 

Os novos ares não vinham apenas do interior da Itália. Logo ali ao lado, na França, uma equipe de críticos da revista Cahiers de Cinemá, resolveu trocar as máquinas de escrever pelas câmeras e, em vez de criticar o trabalho dos outros, passaram a realizar os seus próprios. Bastaram três filmes para que uma nova estética estivesse fundada. Com nome de batismo e tudo: novelle-vague: Nas Garras do Vício (1958), de Claude Chabrol, Os Incompreendidos (1959), de François Truffaut, e especialmente O Acossado (1960) de Jean-Luc Godard). O fato de todos esses filmes serem produzidos e lançados num espaço de no máximo 2 anos não quer dizer pouca coisa.

 

Nessa efervescência de novas idéias e costumes, Fellini encontrou campo fértil para trabalhar suas loucuras e criar seu universo próprio. Três anos após A Doce Vida, em 1963, o cineasta realizou 8 ½ (para muitos, sua obra-prima). Demorou apenas mais dois para surgir Julieta dos Espíritos. Completamente à vontade neste seu estilo de fantasia e de sonhos, Fellini aproveitou esta fita para experimentar novas técnicas (era seu primeiro filme colorido) e, de certa forma, contar a versão feminina de 8 ½. E, por que não, se analisarmos o conteúdo da obra, redimir-se com sua esposa Giulietta Masina, estrela dos seus primeiros longas-metragens, ainda na fase neo-realista.

 

Basicamente, o enredo de Julieta dos Espíritos é até simples. Masina faz a protagonista, uma mulher já adentrando na faixa dos 40 anos, casada com Giorgio, que leva uma vida tipicamente burguesa, na sua enorme mansão, cercada por jardins e piscinas, acompanhada de suas duas copeiras. Tudo caminha bem, até que Julieta passa a desconfiar que seu marido tem um envolvimento extra-conjugal. A investigação sobre a existência ou não deste caso, leva Julieta a enfrentar seus próprios demônios (sua sexualidade reprimida) revisitar sua infância (a encenação da sua primeira peca teatral), recordar dos bons momentos do passado (na figura do seu adorado avô), liberar-se de medos, traumas e neuroses que ficaram escondidas no inconsciente (sua subserviência à mãe fútil), enfim, reavaliar-se como mulher.

 

Nas mãos de Fellini, este roteiro é trabalhado da forma mais não usual possível. Ou melhor dizendo, à maneira de Fellini. Ao longo de sua jornada, Julieta depara-se com uma série de personagens estranhos, como o médium, ser assexuado, que lhe faz previsões; suas irmãs, que mais se preocupam com o visual do que com as próprias filhas; sua vizinha, feita por Sandra Milo (que já havia interpretado papel semelhante em 8 ½), que tem por princípio o sexo livre e os relacionamentos abertos; os detetives particulares, responsáveis pela investigação do caso amoroso do marido da protagonista.

 

A existência real de algumas destas figuras pode inclusive ser questionada. Nada impede que interpretemos a vizinha Suzy como uma personagem imaginária, criada pelo inconsciente de Julieta, e que representaria seu desejo por uma vida sexual menos reprimida. Na sua primeira aparição no filme – a seqüência da praia, em que ela surge acompanhada por uma comitiva de pessoas, aloja-se numa espécie de tenda e exibe-se num ousado biquíni amarelo - já se revela uma certa inveja, disfarçada por um misto de raiva e desdém, que Julieta sente por ela. Julieta só vai conhecer Suzy na sua intimidade, quando é obrigada a devolver o gato desta, que se perdeu no jardim ao lado. A partir daí, Julieta é apresentada aos hábitos daquela personagem, espelhos no quarto de dormir, escorregador para uma piscina interna, tudo construído de forma a manter o espírito libertino em alta.

 

Mesmo os dois homens pelos quais Julieta se sente atraída ao longo do filme (o empresário espanhol que é convidado pelo marido a passar uns dias em sua casa e o garoto de programa escolhido por Suzy), podem ou não ser reais. De minha parte, vejo-os como figuras simbólicas, que retratam uma tentativa de Julieta não mais viver exclusivamente em função de seu marido e passar a assumir as rédeas de seu próprio destino. E isto ocorre no momento em que ela adquire a consciência de que é capaz de admirar e ser admirada por outros homens.

 

Talvez o excesso de figuras bizarras e situações oníricas, seja o que retira um pouco da força do filme. Estes problemas surgem particularmente na cena em que Julieta visita o médium e nas orgias da casa de Suzy. Ainda que estas características sejam praticamente indissociáveis da fita – afinal de contas, estamos lidando com uma obra de Fellini – estas passagens diluem momentos mais humanos e fortes ao longo da história. Os diálogos entre Julieta e seu marido sobre o pretenso caso amoroso deste são diretos, sem firulas. E por isso funcionam. É particularmente feliz a seqüência em que o marido prepara-se para uma viagem de negócios à Milão. Enquanto as verdades vão aflorando, Julieta olha para o jardim, do lado de fora da casa, ao mesmo tempo que sua copeira começa a fechar as janelas da veneziana (mais simbólico, impossível). Em seguida, ao se despedir do marido, a câmera se afasta de Julieta, ouvimos a voz de Giorgio ao fundo, com as promessas de que vai telefonar tão logo chegue ao seu destino, de quanto tempo deverá permanecer afastado etc. Na tela, fica apenas a imagem de Julieta, sentada numa cômoda, encolhida, tímida, concordando com todos os avisos do marido. A câmera se distanciando de Julieta, funciona não apenas como uma despedida literal do marido, mas também como um cair de pano daquele momento da sua vida, para o qual ela sabe não haer mais retorno. 

 

Em linhas gerais, Julieta dos Espíritos é quase sempre a comparado a 8 ½. Em ambos os filmes, Fellini nos traz personagens em situações limites. Em 8 ½, é o cineasta Guido, vivido por Marcello Mastroianni (no fundo, o próprio Fellini), internado num spa, em meio a problemas de saúde e bloqueios criativos, que passa a questionar os rumos para onde sua vida  está lhe levando. Em Julieta dos Espíritos, é a dona de casa burguesa (talvez a própria Giulietta), que fez a opção por uma vida filial, e, ao se ver rejeitada pela matriz (seu marido), percebe que apostou nas fichas erradas. Nos dois casos, os protagonistas precisam decidir qual caminho seguir, já que as contingências da vida lhe estão exigindo tal postura. É o ponto de virada.

 

Do ponto de vista técnico, Julieta dos Espíritos é um primor. O filme chegou a ser indicado aos Oscars de direção de arte e figurinos, mas o que mais se destaca é a fotografia de Gianni Di Venanzo, e a alternância das cores fortes (com ênfase no vermelho), e nas sombras (por várias vezes, não vemos os rostos dos personagens, mas somente suas silhuetas – o que reforça a impressão que de alguns deles não serem reais). Esse jogo de sombras favorece fortemente o trabalho de Giulietta Massina, atriz de enorme expressividade no olhar. Sua quase chapliniana Gelsomina, em A Estrada da Vida, era toda centrada no gestos e no olhar. A Julieta – a dos Espíritos – não tem evidentemente o mesmo ar infantil, mas muito do que ela quer dizer, ela o faz o olhar (a cena do escritório dos investigadores, em que o trabalho dos detetives é revelado, é toda realizada na penumbra, ficando as únicas luzes focadas tão somente nos olhos da atriz, que nos passa, sem dizer uma palavra, a sensação de espanto, raiva, mas sobretudo de extrema melancolia pelo que está sendo revelado).

 

Outro destaque também, evidentemente, vai para Giulietta Masina. Sem ela, o filme simplesmente não existiria. Seu talento era tanto, que a atriz nem precisou de uma filmografia muita extensa para marcar sua presença entre os ícones do cinema do século passado (Caetano Veloso a venerava de tal forma, que compôs uma canção especialmente em sua homenagem). Basicamente, três personagens bastaram: a atriz mambembe Gelsomina, de A Estrada da Vida; a prostituta ingênua Cabíria, de As Noites de Cabíria; e Julieta, a dona de casa mais madura, de Julieta dos Espíritos. Ela ainda trabalhou com Fellini em duas oportunidades: o bom Mulheres e Luzes (1951), o primeiro filme do diretor, e o melancólico mas de certa forma vazio Ginger e Fred (1985) já no final da carreira de ambos. No entanto, ela sempre será lembrada pelos três papéis anteriores.

 

Interessante refletir os sentimentos de Giulietta Massina durante as filmagens de Julieta dos Espíritos. Corriam boatos na época que o seu casamento com Fellini passava por uma crise. A temática da fita toca bem nesta ferida. É bem possível que por trás daquele olhar profundamente triste que Giulietta nos transmite ao longo do filme – mesmo em seus momentos de alegria, sua feição é melancólica – haja uma sinceridade de sentimento que nenhuma técnica de representação é capaz de equiparar.

 

Ainda que imperfeito, Julieta dos Espíritos é um filme riquíssimo. Admite uma série de leituras, de análises psicológicas, da influência que o inconsciente exerce nas pessoas, no modo como a educação forja o caráter e a personalidade dos adultos, da psiquê feminina. Vindo de um Fellini, isto nem chega a ser uma surpresa. Para o bem ou para mal, com excessos ou não, dentro daquele mundo por vezes impenetrável, Fellini sempre foi uma personalidade que teve algo a dizer. E, mesmo tendo nos deixado há mais de uma década, continua se comunicando conosco através de seus filmes.

Comentários (2)

Josiel Oliveira | sábado, 25 de Julho de 2015 - 15:21

Excelente crítica com descrições e interpretações perfeitas, e com um panorama histórico e curiosidades importantes, como essa citação dos boatos sobre o casamento entre o Fellini e a Giulietta Masina (detalhe que a personagem também se chama Giuletta, e com dois t's).
Assisti ontem e achei essa uma obra de altíssimo nível, não sei porque tantas notas médias. Mise-en-scene de primeira e altamente atmosférica, a trilha maravilhosa do Nino Rota, roteiro inteligentíssimo com um estudo freudiano muito bem fundamentado em seu texto, Giulietta Masina arrebenta e vários atores coadjuvantes interessantes, direção de arte foda... cara, sei não, pra mim talvez seja a obra prima do Fellini!!

Josiel Oliveira | sábado, 25 de Julho de 2015 - 15:30

Mas faziam muitos anos que eu não via nada do Fellini, agora fiquei com vontade de rever seus filmes...

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