Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Tinha tudo para dar errado, mas chega como um dos grandes candidatos a novo clássico juvenil.

8,0

Quando a refilmagem do clássico da Sessão da Tarde Karatê Kid – A Hora da Verdade (The Karate Kid, 1984) foi anunciada, todos torceram o nariz, sem exceção. Também pudera: um filme americano recente, com menos de trinta anos, que até pouco tempo atrás passava exaustivamente na TV não parece ser um exemplar de quem mereça ser revisitado tão precocemente. E a cada notícia liberada a história parecia piorar, com a rejeição às escolhas de Jaden Smith (filho de Will Smith, produtor desta nova versão, candidato a futuro astro se continuar seguindo na linha e os conselhos do pai) e Jackie Chan (não pelo ator, mas pelas suas escolhas recentes, uma bomba atrás da outra).

Não dá para condenar. O diretor, Harald Zwart, é responsável por uma série de trabalhos precários, como A Pantera Cor-de-Rosa 2 (Pink Panther 2, 2009) e O Agente Teen (Agent Cody Banks, 2003). As imagens liberadas não foram lá muito animadoras, pois Jaden Smith era claramente pequeno demais para viver o papel que foi de Ralph Macchio em 84 e os figurinos pareciam de filmes para a TV, coloridos e irreais. O cúmulo chegou quando escolheram Justin Bieber para interpretar a canção tema, com seu 'Never Say Never'. Ao mesmo tempo em que ele tem uma série de fãs, possui muito mais haters dispostos a flamear tudo em que ele toca. O clipe da canção, por sinal, é altamente ridículo, com Jaden fazendo várias caras e bocas 'rappers' artificiais. Só que, ao contrário do que tudo indicava, este Karatê Kid (The Karate Kid, 2010) mostrou força e superou todas estas desconfianças.

Para começo de conversa, a história foi bem atualizada: no original, a mãe de Daniel mudava de cidade por causa de uma oportunidade de emprego no ramo dos computadores, emergentes até então. Nesta refilmagem, nada mais justo do que a mãe agora se mude para a China, líder das projeções econômicas mundiais e representando bem a globalização. Por se passar em um país exótico e milenar, há muitas belezas a serem exploradas, não tão comuns a nós, meros ocidentais. Nessa vertente, o filme acerta em cheio ao trazer inúmeras imagens fantásticas do país, como o treino na grande Muralha da China ou visitas a templos simplesmente inacreditáveis, tanto no solo como em montanhas belíssimas. É daqueles filmes orgásticos visualmente, em que é praticamente possível sentir os cheiros da terra e da chuva, que dão vontade de estar lá, junto aos personagens, vivendo no mesmo lugar que eles. É, acima de tudo, para ser sentido – algo raro em blockbusters.

A excelência técnica expande-se para todos os outros quesitos do longa, com os figurinos mostrando-se muito mais eficazes em tela do que nas imagens divulgadas (lembram da crítica acima?) e canções, tanto ternas quanto agitadas, que climatizam de forma simbiótica o que está sendo proposto. As elipses são requintadas e eficientes, como quando pingos de chuva são transformados nos inúmeros alunos do campo de kung fu de uma das academias, ligando as cenas de forma muito elegante. Até mesmo os créditos iniciais são bem trabalhados, com o alfabeto chinês acompanhando o nosso durante a apresentação dos nomes dos envolvidos na produção. Pode parecer um exagero, mas acreditem: visualmente, este Karatê Kid é um dos filmes mais bonitos do ano e supera o original em diversos momentos.

Aproveitando bem a cultura chinesa, pequenos detalhes são inseridos na trama, como o espetinho de insetos (algo 'nojento', mas para uma pessoa que morria de fome durante a guerra, tornou-se referência da região), ou a influência ao estudo de instrumentos e apreciação de música clássica desde pequenos. No caso, Bach, quando a jovem de interesse romântico de Dre (que é mais retratada como uma amizade colorida, bem pertinente à idade) precisa aprender uma de suas mais famosas partituras e executá-la em um palco intimidador, sob os olhares de diversos avaliadores. Ao fim, apenas ele aplaude a apresentação, em outra característica famosa dos chineses, a frieza.

Outra qualidade deste novo Karatê Kid está em não subestimar a inteligência de seu público. Um exemplo é a passagem do tempo, que é percebida através do carro que Han está reformando na sala de sua casa, ao contrário daquelas legendas padrões que demonstram os dias. Conforme acompanhamos o treinamento do jovem, o carro vai ficando cada vez mais arrumado, o que dá a sensação de que os dias estão passando, sem precisar que seja dito para o espectador comum. Este respeito pela inteligência de quem está assistindo se estende por todo o filme, seja na hora em que Dre pega um pedaço de papel, após a bebedeira de Han, e, mesmo aquilo tudo estando em chinês, ele - e, conseqüentemente, nós que estamos assistindo -, entende perfeitamente o que houve, sem precisar que nada além seja dito.

Aliás, peco por não ter feito uma introdução aos personagens e uma pequena sinopse antes: Dre Parker (Jaden Smith) é um jovem típico negro americano que é obrigado a se mudar para a China após a mãe receber uma proposta de emprego. Lá, ele passa a ser perseguido ao se aproximar de uma jovem chinesa, apanhando constantemente sem saber se defender adequadamente, já que todos os chineses treinam artes marciais arduamente desde pequenos. É quando entra na sua vida o Sr. Han (Jackie Chan), o faz-tudo do prédio onde Dre mora, que lhe ensina a essência do kung fu para que o jovem possa se defender dos perseguidores em um torneio local - acordo firmado com o sensei dos jovens, que promete cessar a perseguição a Dre até lá.

Jaden já havia surpreendido ao trabalhar com o pai em À Procura da Felicidade (The Pursuit of Happyness, 2006), em um papel carregado dramaticamente e que dera conta muito bem. Aqui ele está mais desenvolvido, mais solto, incorporado, se divertindo com tudo. Ele é Dre, o novo Daniel Larusso, o peixe fora d’água que deve se adaptar a um ambiente e costume completamente diferentes do que vivia. Convence quando luta, quando treina, quando faz piada, superando a desconfiança das fotos, da idade e do clipe citado de Bieber. Uma discussão em torno de seu personagem, muito mais jovem do que na versão de 1984, pode ser levantada a respeito da precocidade dos jovens de hoje, que amadurecem cada vez mais cedo, seja para se enturmarem, seja pelas necessidades da vida.

É quando finalmente chegamos a Jackie Chan. Dono de um carisma conhecido por décadas pelos amantes de artes marciais, ele vinha em uma curva descendente, em projetos de pouca expressão e comédias infantis. A verdade é que nunca conseguiu alcançar no ocidente o sucesso que teve com seus filmes orientais – e nisso incluo A Hora do Rush (Rush Hour, 1998), seu trabalho de maior êxito por aqui. Porém, em Karatê Kid ele encontra o seu nirvana: mais amadurecido, controlado, sem aquelas caretas e piadas bobas que vinham destruindo suas atuações nos últimos filmes, Chan encara um personagem mais contido, anti-social, que encontra em Dre o filho que gostaria de ter ao seu lado. E, sejamos sinceros, ninguém poderia representar melhor a figura do Sr. Miyagi nesta refilmagem que Chan, de inglês enrolado e características semelhantes.

Não que voltamos a ter aquele Jackie Chan que pula de um lado para o outro fazendo acrobacias insanas sem auxílio de efeitos especiais ou dublês. Na verdade, encontra aqui a oportunidade de interpretar um personagem: de ter um background, sentimentos, algo realmente a dizer, tornando-se, possivelmente, o personagem mais complexo e tridimensional de sua carreira e, porque não, com possibilidades de finalmente ser indicado a um Oscar. Não que ele não tenha seus momentos de comédia, mas são passagens controladas, dentro de um contexto, nunca gratuitas e, principalmente, realmente engraçadas. Nada daquelas babaquices que vinha fazendo.

Em Karate Kid há ainda algumas pequenas referências aos filmes originais. Uma bem clara, que pode ser vista ainda em um dos trailers, é a seqüência em que Han está tentando pegar a mosca com os hashis e acaba matando-a com um mata-mosca, brincadeira ao passatempo do Sr. Miyagi. Uma bem mais delicada e bonita é o senhor que fica cuidando de bonsais no corredor do novo prédio de Dre, em mais uma uma referência clara ao hobbie do Sr. Miyagi, que ganhou certo destaque na trilogia original. Você, mais fanático pela franquia, irá perceber outros pequenos detalhes, que enriquecem como obra e passam despercebidos por aqueles que estão conhecendo a série apenas agora.

A maior fraqueza da fita está justamente onde ela deveria ser mais forte: no torneio final. Harald Zwart não é John G. Avildsen, diretor da trilogia original e de Rocky, Um Lutador (Rocky, 1976), e acaba demonstrando falta de talento para cenas de luta, tirando um pouco da força e da emoção que eram tão fortes nos três filmes referência. Ainda que Jaden Smith esteja sensacional e colabore até em tornar críveis movimentos claramente falsos, falta emoção, coração, na montagem das cenas mais agitadas, sem o mesmo charme e fluência do período de treino.

Aliás, este filme é todo direcionado a novos fãs. Não é feito para mim ou para você, que já acompanhamos cinema há anos, e isso talvez explique até a escolha de Justin Bieber para a canção tema. Sua história continua simples, mas profunda, cheia de ensinamentos e frases de reflexões, além de trazer novamente o interesse pelo esporte aos jovens, diferente da pancadaria sem sentido dos vale-tudos (nada contra quem gosta). Ainda que a produção tenha sido covarde de não trocar o nome para ‘Kung Fu Kid’, o filme está todo lá em essência, em sentimento. Com os roteiristas de Kung Fu Panda (idem, 2008) já anunciados para escrever a seqüência, vamos ver como a série se sairá neste revival, uma vez que o segundo filme da trilogia original se passa no Japão e este primeiro da refilmagem já se passa na China – algo que não poderá ser explorado por eles.

Karatê Kid é um filmaço que venceu toda a aura ruim que havia se formado em torno de sua expectativa e mostrou-se não ser apenas uma refilmagem, mas uma experiência como cinema arte para um gênero desgastado e esquecido.

Comentários (1)

Alexandre Baquero Lima | quarta-feira, 17 de Dezembro de 2014 - 14:25

A cena que Jackie Chan mata a mosca é realmente muito boa! Perfeita para demonstrar como fazer uma referência sem ser exagerado e, ainda, subvertendo-a para conseguir um ligeiro toque de humor muito inteligente.

Faça login para comentar.