8,0
Apontado por muitos críticos como o mais sensível dos cineastas contemporâneos, Eugène Green tem pela primeira vez um filme seu lançado nos cinemas do Brasil. La Sapienza (idem, 2014) é uma boa oportunidade para o público brasileiro conhecer melhor o olhar único e singelo do diretor americano diante do cinema e sua interação com outras formas de arte. Sua visão metafísica aliada ao estilo barroco culmina em um alcance muito amplo sobre as questões que filosofa ao longo de seus filmes, e com La Sapienza o resultado desse conjunto de fatores é impressionante.
A trama gira em torno do casal Alexandre e Aliénor, que viaja à Itália para os estudos de Alexandre sobre os renomados arquitetos barrocos Gian Lorenzo Bernini e Francesco Borromini. Durante a estadia, acabam por conhecer os irmãos Goffredo e Lavinia, dois jovens sedentos pelo conhecimento que despertarão um novo fôlego de vida e ânimo na relação do casal.
Por meio desse ponto de partida, o filme se divide em diversos estudos. Primeiramente, a relação desgastada de Alexandre e Aliénor e a forma como a interação com Goffredo e Lavinia acaba por interferir nesse desarranjo conjugal. Enquanto Alexandre e Goffredo se enfrentam numa comunicação difícil e aos poucos cada vez mais pessoal, Aliénor e Lavinia se identificam logo de cara e uma amizade muito natural começa a nascer entre as duas. A sinergia entre os pares é o ponto primordial da trama – a jovialidade dos irmãos desperta uma nova chama entre o casal, enquanto a sabedoria dos mais velhos alimenta a sede insaciável de conhecimento dos jovens, formando assim um mosaico de quatro personagens que se descamam gradativamente através de diálogos inspirados e um mimetismo certeiro por parte dos atores, que compõem uma dramaturgia propositalmente mecânica e artificial, de modo a ressaltar o caráter autoconsciente da obra.
La Sapienza entra a partir deste ponto em uma profusão de ideias, cores, formas, luzes, línguas e angulações que resulta em uma ampla discussão do cinema e de outras formas de arte, focado especialmente na arquitetura. Se em A Ponte das Artes (Le Pont des Arts, 2004) Green buscou amparo e homogeneização do cinema com a música e em A Religiosa Portuguesa (idem, 2009) com a literatura, aqui ele trabalha muito com formas e ângulos que compõem a arquitetura italiana tanto real quanto cênica. É um trabalho artesanal e fabulístico em volta da composição visual de cada cena, revelando um olhar apurado e sensibilíssimo como não se vê há muitos anos no cinema contemporâneo.
A clara declaração de amor à arte em sua essência move Green a negar qualquer característica naturalista e realista em função de uma valorização da farsa e da encenação, de modo a deixar o espectador o tempo todo consciente da condição da história enquanto ilusão, sonho. Por isso os longos momentos de contemplação silenciosa, ângulos expositivos, mise-en-scène desnudada e quebras da quarta parede, literalmente esculpindo em celuloide as formas, peças e encaixes para a construção arquitetônica da imagem – e realçando assim sua abordagem sobre as díspares formas dos trabalhos barrocos de Bernini e Borromini. Sendo o espectador tão ciente o tempo todo da condição do filme enquanto obra de arte, as discussões do roteiro ganham um valor límpido e direto aos nossos olhos.
No fim, a ideia é sobre transmitir clara e nitidamente o valor do conhecimento e da arte para novas gerações, um tema recorrente que tem se mostrado a espinha dorsal do cinema de Green. Artes estas capazes de provocar reflexões sobre a vida, realinhar a sintonia nas relações humanas, estimular o raciocínio e a contemplação, reaproximar o homem da natureza (e de sua própria natureza), trazer uma nova e particular visão sobre o mundo e seu funcionamento, perpetuar memórias e conceitos, e nos redesenhar na linha do tempo – uma criação com o poder de se tornar maior e mais eterna do que seus próprios criadores.
Dono do plano mais lindo do ano.
Grande, como todo filme do Green.
muito bom, Heitor!