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Levando Doces ao Cavalo

(Ghode Ko Jalebi Khilane Le Ja Riya Hoon, 2019)
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Críticas

Cineplayers

Furacão de imagens

6,5

A visão de Anamika Haksar para o lado mais profundo da sua própria terra desbrava lugares comuns da Índia e reafirma a poética do onírico como mola preponderante do material indiano por excelência. Já consagrada no teatro local, Anamika está debruçada há anos em pesquisa sobre a região de Shahjahanabad e todo esse conhecimento fez nascer uma obra definitivamente ímpar, para o bem e para o mal. Envolvida com o tanto de material documental recolhido ao longo de sete anos, a ideia de misto de painel local é caldeirão cultural é defendida com indiscriminada paixão na tela, contagiante na maior parte do tempo e com uma visão surpreendente sobre a arte, as tradições e as idiossincrasias locais, algumas pouco positivadas. Sem medo do excesso, o filme não tem medo de empunhar flechas e ser alvo ao mesmo tempo.

Uma espécie de coral amplo sobre a periferia de Déli com espaço para batedores de carteira, guias turísticos, empregadas domésticas, puxadores de riquixá entre inúmeras outras atividades, o filme explora quase centralmente a força da significação dos sonhos e do papel dele na trajetória diária de cada um, visto que eles regem muitas vezes os rumos que cada um empreende na própria vida. Anamika se pretende sedutora enquanto cineasta e cria um deleite visual por conta da primeira hora inteira, em uma profusão de imagens e de tentativas que arremessam o longa para um lugar de infinitas e inacreditáveis possibilidades. Mesmo incorrendo em indiscrição crítica, a autora possibilita uma obra sem igual que não esgota sua tratamento visual e além de provocar impacto, tira a base da expectativa do espectador, que nunca consegue prever onde a próxima curva da direção irá levar o filme; (quase) tudo é permitido.

Entrecortado por trucagens visuais de todas as ordens possíveis quase ininterruptamente nessa primeira hora, o filme abraça a animação, o recorte, a montagem múltipla de cenas, os efeitos visuais práticos e técnicos, o filme é um caleidoscópio de imagens feéricas quase 'non stop', que nunca cansa ou provoca enfado pelo excesso - e se tem algo que o filme é, é excessivo, sem qualquer vergonha. Tem tanto carinho na criação dessas imagens e isso é tão evidente, que o produto nunca consegue repelir. Tecnicamente é tudo muito bem executado, montado com esmero ao respeitar os cortes e o tempo de cada cena, de direção de arte impressionante e um trabalho sonoro muito eficiente, o filme é um potente petardo político pela própria razão de existir, a partir do que filmar, como filmar, e como exibir essa coragem de maneira explicita. Exaltando a vida à margem, Anamika expõe os reis e rainhas de sua Índia fora dos cartões postais pra exaltar todas as Índias.

Usar a belíssima luz de Saumyananda Sahi para tratar o roubo em arte, marginais em protagonistas valorosos, criar cenas complexas como a do casamento, explorar os dilemas morais desses mesmos desgarrados, exaltar a cultura de rua, os sabores e pratos típicos das vielas, discutir a exploração sexual feminina, como um filme como esse não seria intrinsecamente político? É a partir da segunda metade, ao permitir um olhar mais naturalista sem inserções visuais, que o longa demonstra queda, de vigor, de linguagem e de desgaste que parece não caber no pacote. A necessidade dispensável de 'falar sério' apequena a produção e não o torna mais relevante do que ele sempre foi; a momento cru do filme só tira força de um produto de natureza exuberante, que pede licença de maneira envergonhada pra aparentar maturidade.

Ainda que o filme nunca abandone a poesia (e o plano das roupas na corda que se abrem para um inesquecível oceano mostra que o apuro visual não é abandonado), essa ranhura fica indelével no DNA da produção, que escolhe se encerrar de maneira raivosa, um sentimento de revolta pelo massacre diário que sofre, quase um grito por um levante. Essa opção sim parece mais genuína e potente o suficiente pra retomar a vibração de um projeto rebelde que esfrega sua pujança nos fotogramas alheios. 

Filme visto no Olhar de Cinema de Curitiba

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