Saltar para o conteúdo

Liliam, a Suja

(Lílian - A Suja, 1981)
7,6
Média
7 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

De noite

8,5

“Não olha a noite! Ela está cheia de fantasmas”. A frase que ecoa em Liliam, a suja (Antonio Meliande, 1981), parece definir algumas ideias do filme. Afinal, pode ser que olhar pela janela durante a noite seja um modo de encontrar fantasmas. Todavia, ao mesmo tempo, pode ser tão fascinante que é impossível não se deixar seduzir pelo que a ausência de luz natural pode oferecer. A falta de sol, contudo, não quer dizer que não haja luz. Os neons nas avenidas; os faróis dos carros que cortam as ruas; bares; bancas de jornais; lanchonetes, criam um ambiente característico das grandes cidades captadas pelas lentes de Meliande, a fim de compor um caleidoscópio com as sensações que a noite pode oferecer.

Retrato de um Brasil já majoritariamente urbano. Especialmente da cidade de São Paulo - maior metrópole do país - e sua horda de párias sociais, que viam na escuridão o momento de sair de suas tocas para povoar uma cidade que não para nunca. A luz também é uma particularidade do trabalho de Meliande. Ele se notabilizou como diretor de fotografia em filmes da “boca do lixo” e captou como poucos a realidade urbana paulistana da década de 1980.

É possível destacar, inclusive, que Liliam, a suja antecipa um cinema vindouro paulistano conhecido como neon-realismo. Os mais conhecidos filmes do grupo: Cidade Oculta (Chico Botelho, 1985), Anjos da noite (Wilson Barros, 1986) e A dama do cine shanghai (Guilherme de Almeida Prado, 1987), também radiografavam a noite paulistana e os tipos sociais que frequentavam os peculiares ambientes noturnos das regiões boêmias da cidade. Entretanto, os filmes do grupo neon-realista tinham o interesse em uma certa aura sofisticada, filmes que demonstravam um conhecimento prévio da história do cinema e momentos de metalinguagem e ironia com as ambientações representadas.

Liliam, a suja, por outro lado, vai direto ao ponto. A história da mulher que leva os homens para cama e os assassina das mais diversas formas, tem um claro interesse nos grafismos dos homicídios. Então, dá-lhe facadas, tiros, degolações e envenenamentos como forma da protagonista encerrar seus encontros. A obra aproveita-se da existência de um contexto de sequências de sexo mais fortes nos filmes brasileiros, especialmente após o lançamento de Coisas eróticas (Raffaele RossiLaerte Calicchio, 1980) que continha sequências de sexo explícito. Assim, sexo e morte se tornam marcantes em Liliam, a suja, através de um olhar franco, sem pudores e, de alguma maneira irresistível, imprimido por Meliande.

Os homens que são seduzidos por Liliam (Lia Furlin) têm um perfil claro: são sujeitos ricos. A moça, que é costumeiramente abusada sexualmente pelo seu chefe durante o dia de trabalho, vinga-se à noite executando sujeitos do mesmo extrato social. Assim, é como se Liliam fizesse uma limpeza dos tipos mais conservadores da cidade e que frequentam restaurantes caros, sentindo-se à vontade para falar os maiores disparates possíveis - especialmente, sobre pessoas que não fazem parte dos ciclos sociais que estão acostumados a frequentar.

A alcunha de Liliam, a suja, parece, inclusive, tirada das manchetes de jornais sensacionalistas que acompanham com interesse o rastro de sangue deixado pelos serial killers. Entretanto, é a própria Liliam que cria esse apelido para si. Como se a própria soubesse que suas ações são sórdidas. Contudo, ela não consegue deixar de praticá-las. Os traumas de infância, causados ao ver o pai agredir constantemente a mãe, deixaram marcas profundas na moça. Seja a imagem que tem da violência com que seu pai tratava sua mãe ou a forma como é vista por seu chefe, Liliam é absolutamente insegura em espaços sociais tidos como protegidos. Mesmo na sua vizinhança, não pode sentir-se à vontade, pois dois sujeitos podem conversar sossegadamente sobre o desejo de violentá-la. Alguém que cresce em meio à brutalidade institucionalizada, revida de alguma maneira. E os ataques durante a noite - momento de rompimento das regras sociais estabelecidas - tornam-se a melhor maneira de fazê-lo.

Os olhos arregalados de Lia Furlin, associados à trilha sonora angustiante - que emergem quando Liliam se prepara para mais um assassinato -, sublinham os conflitos internos da moça. A figura frágil da atriz associada a uma personagem que parece ser a filha perfeita, que faz tudo em prol da mãe deficiente física e funcionária abnegada em seu trabalho contrastam com o instinto assassino que aflora quando se prepara para matar mais um homem.

Em Liliam, a suja é como se as ações durante o dia (casa, trabalho, rotina) influenciasse a noite (festas, bebidas, desregramento), e certos padrões comportamentais pudessem ser estilhaçados. Liliam, então, é fruto de uma cidade partida. Algumas vezes sedutora, mas costumeiramente perigosa. Como a noite.

Crítica integrante do especial Abrasileiramento apropriador do Halloween

Comentários (1)

Ted Rafael Araujo Nogueira | quarta-feira, 23 de Dezembro de 2020 - 13:21

Outra pedrada sensacional. Só aloprando Lucas Reis. Arrocha.

Lucas Reis | sábado, 26 de Dezembro de 2020 - 13:51

Valeu, Ted! Bom demais construir esse especial com aqui!!

Faça login para comentar.