Saltar para o conteúdo

Little Joe: a Flor da Felicidade

(Little Joe , 2019)
5,9
Média
11 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Ameaça furtiva

6,5

Rara é a obra de fantasia que não traga uma discussão real por trás. Raríssima. O que pode, tantas vezes, fugir à intenção de seu realizador (vide o fato de toda obra se transformar ao chegar ao público  e tantas vezes o coletivo encontrar um mesmo significado involuntário em uma obra de arte). A franquia Sexta-Feira 13 (Friday The 13th, 1980) é um bom exemplo disso. Um projeto nascido para fazer dinheiro desde que seu high-concept não passava de um título, como admite seu próprio criador, Sean Cunningham. Que, enfiando os pés pelas mãos, viria a criar um dos filmes mais influentes do seu tempo ao definir os parâmetros do slasher movie, subgênero do horror no qual um maníaco mascarado serve como expiação dos pecados da juventude, como consumir drogas e, principalmente, fazer sexo. Assim, a heroína será (quase) sempre a virgem. Desse modo, uma obra típica da mentalidade blockbuster, ré confessa de copiar os signos de Halloween (idem, 1978), assumidamente comercial e despretensiosa, ganha potência e tons quase premonitórios como alegoria de um tempo em que a reivindicação da juventude por liberdades individuais (que viveu seu auge na década de 70 com o movimento hippie e, no cinema, com a Nova Hollywood) sucumbia frente a uma escalada conservadora que atingiria seu ápice meses depois, com a eleição do presidente Ronald Reagan.

Toda essa digressão (se excessiva, perdão) é uma síntese dos pensamentos que me invadiam não depois, mas durante a sessão de Little Joe (idem, 2019). Um filme que por vezes testa a paciência do espectador no limite do insuportável. Em suas escolhas formais, como o uso de uma trilha sonora irritante que pontua as bizarrias do roteiro; e narrativas, ao contar uma história que percorre uma perigosa encruzilhada entre o verossímil, o farsesco e o alegórico  sobre questões patentes, como maternidade, suicídio e transformações no inconsciente coletivo. Então, colocando em perspectiva toda a série de escolhas ousadas feitas por Jessica Hausner, o veredicto é que, goste ou não, a cineasta austríaca fez exatamente o filme que queria. Que desafia, provoca, interessa. Por mais intragável que tantas vezes soe em seus longos 105 minutos.

Little Joe conta a história de Alice Woodaard (Emily Beecham), uma cientista ambiciosa que quebra protocolos ao desenvolver uma nova espécie de flor modificada geneticamente para ser estéril. O que logo chama atenção ao associarmos isso ao fato de Alice ser uma mãe solteira muito dedicada ao seu filho, Joe. Não à toa ela batiza a sua planta experimental de Little Joe. Também não é à toa que isso se torne sua obsessão. A ponto de, mais uma vez, burlar as regras e levar a flor para casa, presenteando o filho com o objeto de sua homenagem. Que logo se mostrará bem perigoso, pela forma com que Jessica Hausner constrói Little Joe (narrativa e visualmente) como uma flor cheia de personalidade e cercada de uma aura de horror, e pelo efeito hipnótico que o pólen do personagem — sim, personagem — causa quando entra em contato com as pessoas.

Tudo em Little Joe é estranho: o tom, o som, o ritmo, as interpretações e até mesmo os bonitos figurinos e penteados de Emily Beecham (em boa atuação, mas nada do tamanho de um prêmio de atriz no Festival de Cannes). Os cenários também portam essa característica. O filme se passa, basicamente, em dois espaços: os laboratórios e a casa de Alice. Cada qual com seu próprio toque asséptico, por mais que em um faltem e no outro sobrem cores. Falando em cor, o rubro de Little Joe é aquela típica escolha óbvia e acertada: funciona narrativamente, ao comunicar a ameaça furtiva e traiçoeira da linda flor, e proporciona ótimas cenas, de beleza e requinte estético.

Apesar dessas qualidades, e do investimento de Jessica Hausner em tudo que é estranho ser algo coerente, Little Joe é, em essência, um longa-metragem pouco envolvente. O roteiro, coescrito por Géraldine Bajard, contribui para isso com sua forma plana, simples, toda construída em tempo baixo. A maior alternância, além de um incidente mais grave já perto do fim, são as cenas da sessão de terapia de Alice conforme a trama avança e o ceticismo da protagonista começa a ser testado. Ou o filme joga o jogo do ponto de vista e o filme gira todo em torno da confusão psicológica de Alice? Nem acho que seja o caso, mas Jessica Hausner é esperta o suficiente de jogar isso na trama e, assim, deixar o espectador mais ativo durante a sessão. Significado, porém, não tem. Não vejo.

O que não se pode dizer sobre as discussões principais que o filme suscita. Com uma trama principal que gira em torno das responsabilidades e dos limites éticos da modificação genética, um breve diálogo sobre a necessidade natural de todo ser vivo em reproduzir e uma crônica de personagem doente, depressiva, tratada com ironia e preconceito pelos colegas, Jessica Hausner ora reflete sobre problemas atuais, ora confronta visões de mundo distintas, conservadorismo e progresso. E faz isso tudo quando o pólen de Little Joe provoca, pouco a pouco, silenciosamente, um surto coletivo. O espectador mais atento verá naquela bonita e perigosa flor, e nos cientistas hipnotizados que perdem o senso crítico e a defendem de forma irracional, um paralelo com os políticos de extrema-direita do mundo inteiro e seus apoiadores ferrenhos. O recado da cineasta   mulher, artista e austríaca, portanto, sente na pele o avanço terrível da extrema-direita em seu país — é direto e reto para quem sabe ver. A estes, o presente de um filme que, sob uma capa por vezes simplória e tantas outras desagradável, guarda uma potência surpreendente.

Crítica da cobertura do 21º Festival do Rio

Comentários (0)

Faça login para comentar.