8,5
Lucky acorda cedo todos os dias, escova os dentes, se penteia, passa um pano molhado pelo corpo para se limpar, bebe um copo de leite e pratica alguns exercícios de ioga antes de calçar suas botas e chapéu de cowboy e sair para perambular pela cidadezinha árida em que mora. Com mais de noventa anos de idade, ele cumpre essa rotina sistemática de visitar a lanchonete para tomar um café e fazer palavras cruzadas, passar no mercado para comprar maços de cigarro e garrafas de leite, encontrar os amigos no bar para jogar conversa fora.
Os primeiros minutos de Lucky (idem, 2017) são inteiramente dedicados a acompanhar o dia a dia desse ilustre personagem defendido por Harry Dean Stanton, no melhor papel de sua carreira em muitos anos. Dirigido por John Carroll Lynch, o filme é mais uma homenagem ao ator do que qualquer outra coisa. Sempre relegado a papéis coadjuvantes, poucas vezes Harry Dean teve a chance de brilhar como aqui, e o faz com o vigor e expertise que somente um veterano que atravessou praticamente todas as grandes mudanças do cinema americano desde a velha Hollywood até hoje poderia. Lucky é, em poucas palavras, a justiça tardia sendo feita a um dos maiores atores de todos os tempos.
O ponto de partida para que Carroll Lynch adentre na intimidade desse personagem tão embrutecido pelo sol, pelos anos e pela rotina é uma inesperada queda que Lucky sofre dentro de casa. Quando, diante do médico, ele recebe a boa notícia de não ter fraturado nenhum osso, de não ter sofrido nenhuma concussão, de estar com o coração em ótimo estado, de não ter nenhuma sequela das décadas de fumo em seus pulmões sadios. Em contrapartida, surge uma dúvida inevitável: o que poderia então ter causado a queda súbita? A resposta vem tão óbvia quanto devastadora: Lucky é, simplesmente, velho demais. A verdade é que poucas pessoas chegam à casa dos 90 e, por melhor que se esteja, a idade vai pesar. De repente, como se até então ele nunca tivesse se dado conta disso, Lucky percebe que está velho. Pior: percebe que está perto de morrer.
A partir desse ponto, tudo na rotina de Lucky terá um peso diferente. Aquele velho cowboy resistente, com o vigor de um touro, aos poucos se percebe menor, mais frágil, mais vulnerável, mais sozinho. A sensibilidade na direção estreante do ator John Carroll Lynch está em se aproximar muito sutilmente dos medos que corroem Lucky, da insegurança que se instaura nele quando diante de situações antes corriqueiras, mas agora subitamente assustadoras, como uma festa de aniversário, a comemoração irracional da passagem dos anos que tanto alegra as pessoas e que de repente aterroriza o personagem. Por mais que tenha vivido bem, Lucky ainda tem muito que viver, não se cansou de existir. Ao longo do filme, uma série de personagens diferentes cruzará seu caminho e lhe oferecerá novas expectativas sobre o tempo e a vida e, muito mais sensibilizado, ele deixará seu coração sentir e perceber melhor isso tudo que sempre esteve à sua frente.
Lucky, o filme, é pontuado de muito humor e descontração, a fim de equilibrar o drama do personagem, de modo a nunca deixar que o clima fique muito pesado ou sufocante. O personagem vivido pelo diretor David Lynch, Howard, por exemplo, é um perfeito exemplo desse balanço dosado pela direção. Ao mesmo tempo em que a busca de Howard pelo seu jabuti fujão (cujo nome é Presidente Roosevelt) tenha todo um aspecto cômico, há também uma cena muito emocionante em que ele revela o quanto a companhia do animal supre sua solidão. Inclusive o jabuti e sua conhecida longevidade centenária comove Lucky e o lembra de sua desvantagem em relação ao tempo de vida do animal. Os cactos que dominam o cenário desértico da cidadezinha em que a história se passa também estimulam reflexões no personagem e em sua pequenez diante a vida.
É inevitável a emoção de ver a proximidade de Harry Dean – morto em setembro deste ano – com o papel que interpreta. Tal qual sua recente e musical participação na terceira temporada da série Twin Peaks, o ator parece ciente de seu iminente fim. Para quem chega aos 91 anos, a morte parece sempre escondida atrás da porta, pronta para dar seu bote. Lucky sabe que para o jabuti de Howard e para os cactos ela ainda é uma realidade distante, mas que para ele não. E, num dos planos mais lindos do cinema americano recente, ele se vira para a câmera, quebra a quarta parede com seus olhos marejados e seu sorriso no rosto, ciente e finalmente conformado com o que o aguarda. Ou melhor: com o que nos aguarda.
Visto na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Aguardando a melhor atuação do ano.