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Luzes da Ribalta

(Limelight, 1952)
8,5
Média
327 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

O sorriso do palhaço triste.

10,0

Uma das origens da figura popular dos palhaços se encontra no teatro de rua de séculos atrás, posteriormente fazendo grande sucesso nos carnavais à moda antiga, onde se contava a tragicômica história de Pierrô, Columbina, Pantaleão e Arlequim. A imagem do palhacinho Pierrô – um largo macacão bicromático, rosto coberto de pó branco e uma lágrima negra desenhada abaixo do olho esquerdo contrastando com o largo sorriso vermelho – costumava chamar a atenção das crianças, arrancava gargalhadas e deixava bem claro que toda a raiz de sua comicidade se encontrava na tragédia de não ser amado e reconhecido por sua querida Columbina. Seu coração se despedaçava cada vez que assistia sua amada dançar para conquistar Arlequim – e de todo seu sofrimento nascia sua arte de fazer rir.

De todos os “palhaços” modernos, nenhum foi mais capaz de entender e transmitir essa correlação entre a tragédia e a comédia do que Charles Chaplin, em especial quando decidiu se despir de sua própria criação de palhaço – o famoso Vagabundo – para aparecer de cara limpa em um dos seus filmes mais pessoais e melancólicos, Luzes da Ribalta (Limelight, 1952). Ciente de que seu fim como o grande comediante do cinema estava iminente, Chaplin decidiu aparecer ao público livre de seus artifícios cômicos e expor em primeiro plano aquela melancolia antes implícita em suas grandes comédias. Desta vez sua preocupação maior não era chamar a atenção para o sorriso vermelho de pierrô, e sim para sua lágrima negra. 

Tudo o que envolve Luzes da Ribalta, e não apenas o filme em si, como também sua divulgação e recepção na época, é triste. Primeiro porque se trata de uma espécie de testamento do gênio ao cinema, depois porque também pode ser considerado seu testamento ao mundo. Todos os seus traumas pessoais, medos, amarguras, alegrias, esperanças e ideias estão de alguma maneira assumindo forma na trama do filme, e não é preciso de muito esforço para enxergar isso. Na história fictícia, temos Calvero (o próprio Chaplin), um comediante em decadência que salva a bailarina Terry (Claire Bloom) do suicídio. Após o ocorrido os dois formam uma bela amizade, em que Calvero tenta estimular Terry a voltar a dançar, enquanto ela se mostra insegura demais para isso. E numa questão de pouco tempo, a moça volta a praticar sua arte e alcança o estrelato, ao mesmo tempo em que seu velho amigo palhaço se afunda no esquecimento e na amargura.

Como fica claro na história, há muito de Chaplin em Calvero. Depois de passar por uma época de muitas mudanças para o cinema, principalmente com o surgimento das cores e do som, o cinema de Chaplin foi aos poucos ficando para trás e não conseguiu acompanhar a constante evolução técnica daqueles dias. Por mais que tenha se saído bem em seu primeiro filme falado, O Grande Ditador (The Great Dictator, 1940), foi inevitável perceber que as falas haviam matado seu principal e mais famoso personagem, que se valia do silêncio e da simplicidade para conquistar o coração do público. Desde então, sua estrela começou a se apagar – assim como a de muitas do cinema antigo – e o cineasta caiu em um processo de depressão e amargura insuperáveis. O ápice dessa ingratidão do público e da crítica diante de sua importância no ramo cinematográfico se deu quando foi exilado em Londres e impossibilitado de divulgar e lançar Luzes da Ribalta em território americano. O filme só foi lançado por lá na década de 1970, onde inclusive rendeu o único Oscar a Chaplin, por melhor trilha-sonora.

No caso de Calvero e Terry, podemos enxergar os sentimentos que passavam pelo coração do cineasta diante de tanta tristeza. Luzes da Ribalta é, assim como quase todo trabalho de Chaplin, envolto em uma atmosfera inexplicável de melancolia e otimismo. Por um lado, se foca em mostrar toda a amargura do palhaço Calvero diante do esquecimento e desprezo de seu público; por outro, apresenta uma ponta de esperança na figura de Terry, uma artista também talentosa e cheia de vida pela frente. De certa forma, é como se ele estivesse passando o bastão para a geração mais nova e incentivando a acreditar sempre na força de se fazer arte, qualquer que seja o tipo. As luzes da ribalta que titulam a obra se apagam para Calvero na mesma medida que se ascendem para Terry, e essa é a realidade da maioria dos artistas. 

Buster Keaton, com quem Chaplin desenvolveu certa rivalidade em seus dias de glória, faz uma participação inesperada na trama, que só serve para reafirmar a mensagem dura do filme em criticar o descaso e esquecimento do público diante de grandes ídolos do passado. Juntos eles comandam um lindo número de comédia e música, em um dos pontos mais altos e tocantes deste trabalho – até porque se trata de um dos últimos trabalhos de destaque de Keaton nas telonas. Geraldine e Sydney Chaplin, filhos de Charles, também estão entre as participações especiais.

Mais do que um balanço de sua carreira, Chaplin faz em Luzes da Ribalta um relato de como sua vida pessoal influenciou na sua maneira de fazer filmes. A própria Terry é uma personagem baseada na mãe de Chaplin, que foi uma atriz e cantora esquecida depois de perder a voz por conta de uma doença na laringe. O mesmo trauma do esquecimento que Chaplin viu atormentar sua mãe acabou lhe afligindo tanto tempo depois, numa triste ironia. Neste caso, ela enlouqueceu e foi mandada para um asilo; mas para Terry, Chaplin inventou Calvero, uma salvação que ele gostaria de ter sido para sua mãe.

Temos em Luzes da Ribalta uma das personalidades mais influentes do século XX questionando sua própria figura de palhaço, refletindo na relevância de sua imagem para o cinema e para o mundo, deixando de lado a fama que sempre lhe mitificou para expor sua verdadeira identidade e seus reais sentimentos. Não há truques, maquiagem ou fantasias neste filme – apenas uma história teoricamente fictícia que carrega consigo uma atmosfera de belezas tristes, mas real demais para o principal envolvido. Nessa vitrine no qual ele mesmo decidiu se colocar, é possível enxergar por trás de todos esses sentimentos e situações, por trás de toda a maquiagem de um sorridente pierrô, a essência de um homem indignado com a futilidade do mundo que o cercava e que nunca conseguiu superar em sua vida um eterno sentimento de abandono e solidão.

Comentários (9)

Conde Fouá Anderaos | quarta-feira, 01 de Agosto de 2012 - 09:06

... de o conhecer por cerca de 3 décadas). Como os EUA mandavam no mundo, isso influenciou em escala mundial. Na década de 80 ele foi uma das maiores bilheterias da China.

Conde Fouá Anderaos | quarta-feira, 01 de Agosto de 2012 - 09:08

Opa. Ia me esquecendo. Belo Texto Heitor. Gostei muito. Sobretudo da nota: 10.

Heitor Romero | quarta-feira, 01 de Agosto de 2012 - 10:48

ok, talvez eu não tenha me expressado direito. Não quis dizer que o cinema dele ficou ultrapassado no sentido de deixar de ser relevante. Muito pelo contrário, até hj o humor e o sentimentos dos filmes dele prevalecem intactos. A questão é que Chaplin lutou contra isso, não quis a princípio o som e as cores (Luzes da Cidade foi uma espécie de protesto pessoal dele na época), e isso prejudicou o lado comercial da questão, tendo em mente que os filmes dele costumavam ser mto populares. Claro q se ele quisesse acompanhar de cara as mudanças, ele conseguiria, pq tinha talento pra isso ( O Grande ditador, primeiro filme falado dele tá aí pra provar). Mas ele não quis, e por isso teve de sacrificar seu personagem mais famoso, já que não era mais comercialmente viável continuar com filmes mudos.

Marcelo Maimeri | segunda-feira, 23 de Dezembro de 2013 - 15:00

Excelente texto Romero, meus parabéns. Você conseguiu sintetizar em suas palavras tudo que Chaplin quis transmitir como mensagem neste seu belíssimo filme.

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