Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Forster prova, definitivamente, pertencer ao grupo de melhores diretores da atualidade com esse drama emocionante.

9,0

Marc Forster pode ainda não ter entrado no rol dos grandes diretores em atividade, mas seu talento é inegável. Mesmo que falte ao cineasta aquela obra-prima capaz de colocar seu nome ao lado dos grandes, Forster construiu uma carreira com filmes de altíssima qualidade e – o que é ainda mais impressionante – completamente diferentes entre si, mostrando não apenas talento, mas versatilidade. Assim, depois dos ótimos A Última Ceia, Em Busca da Terra do Nunca e A Passagem, o diretor surpreende outra vez com Mais Estranho que a Ficção.

Escrito pelo estreante Zach Helm, a obra conta a história de Harold Crick, um auditor da Receita Federal com uma vida regrada nos mínimos detalhes. Solitário, Crick segue sempre a mesma rotina, inclusive marcando no relógio o tempo certo para tomar café. Certo dia, começa a ouvir a voz de uma mulher narrando todos os seus atos, como se fosse personagem de uma obra literária. Como se não bastasse, a narradora acaba deixando escapar que Crick está prestes a morrer, o que o coloca em uma corrida para tentar descobrir o mistério, enquanto se apaixona pela primeira vez em muitos anos.

Como pode se perceber, Mais Estranho que a Ficção parte de uma premissa original e com muitas possibilidades. E é extremamente satisfatório ver como estas possibilidades foram bem aproveitadas. Mais Estranho que a Ficção não é apenas um filme com um ponto de partida interessante, mas uma obra que consegue pegar este ponto de partida e desenvolvê-lo ao máximo, levantando diversas questões e criando momentos de pura beleza.

Um dos pontos mais interessantes de Mais Estranho que a Ficção é como Forster e Helm fogem das expectativas do público. Quem entra no cinema esperando uma comédia vai se surpreender. Há, claro, momentos de humor, mas o filme é mais um drama repleto de criatividade do que um longa para arrancar risadas. Até Will Ferrell deixa todo o seu histrionismo de lado por uma interpretação incrivelmente contida (algo que comentarei mais adiante).

Assim, o roteiro de Zach Helm revela-se muito mais profundo do que parece no início. Com muita sensibilidade e altas doses de imaginação, a história consegue algo bastante raro nos dias atuais: contar uma mensagem já batida (sobre aprender a viver e buscar a beleza em cada detalhe da vida) de uma maneira diferente e original. Como resultado, Mais Estranho que a Ficção revela-se um filme edificante, mas jamais piegas ou manipulador. A estrutura da história ainda encontra referências em outras obras, como as de Charlie Kaufman (especialmente Adaptação), qualquer filme no qual o personagem descobre ter pouco tempo de vida e até o best-seller O Mundo de Sofia.

Aliás, a analogia com o livro de Jostein Gaarder revela-se mais acurada quando se analisa as diversas questões propostas por Helm e Forster – e é aí que Mais Estranho que a Ficção enriquece de maneira grandiosa. Ainda que na superfície seja um romance e uma comédia com tons estranhos, a obra revela suas camadas e inteligência quando analisada com mais calma. Além das óbvias questões acerca da vida e da morte, o roteiro ainda traz à tona assuntos como a importância da arte (inclusive indo a fundo na relação entre criador e criatura) e aborda questões filosóficas (eis que a comparação com O Mundo de Sofia se torna acertada), como as clássicas perguntas “quem somos?”, “de onde viemos” e “o que estamos fazendo aqui?”.

E o melhor de tudo é que a direção de Forster consegue tratar destes assuntos de forma leve e agradável, jamais tornando o filme cansativo ou forçado ao espectador. Forster demonstra sensibilidade nos momentos mais emocionantes e muito tato ao equilibrar com talento a comédia e o drama. Além disso, sua narrativa é extremamente calma – mas nunca chata – sabendo apreciar e dar valor aos momentos mais singelos (como quando Crick experimenta a bolacha no copo de leite).

Outro acerto de Forster e Helm é não justificar o acontecido. Como é possível que Harold Crick seja personagem da uma história e, ainda por cima, consiga escutar a narradora de sua vida? Os cineastas acertam ao perceber que a resposta para essa pergunta não faria a menor diferença ao filme – ou até faria, mas para o lado negativo, uma vez que não seria possível encontrar qualquer explicação plausível. Dessa forma, assim que o espectador “compra” o absurdo da trama, é possível mergulhar de cabeça na viagem proposta por Forster.

Seguindo o mesmo caminho de atores como Jim Carrey, Robin Williams e Adam Sandler, que vêm escolhendo projetos mais sérios, Will Ferrell esquece as gritarias e o exagero que se tornaram suas características para compor um personagem introspectivo e sem prazer na vida. Por mais que sua persona seja engraçada por si só, Ferrell conquista a compaixão do espectador com poucos minutos de projeção, revelando-se a grande surpresa de Mais Estranho que a Ficção. O ator é responsável por belíssimas cenas, como quando (NÃO LEIA O RESTO DESTE PARÁGRAFO SE AINDA NÃO VIU O FILME) aceita o sacrifício para que uma obra de arte não seja estragada.

Mas não é apenas Ferrell o destaque no elenco de Mais Estranho que a Ficção. Dustin Hoffman está deliciosamente sarcástico como o professor de literatura, responsável pelas melhores tiradas do filme. Enquanto isso, a sempre excelente Emma Thompson capricha na excentricidade de Kay Eiffel sem jamais soar caricata. E, por último, Maggie Gyllenhaal consegue cativar o espectador como o interesse amoroso de Harold Crick.

Em contrapartida, Queen Latifah é desperdiçada em um papel que, mais do que secundário, é até desnecessário à trama. Forster também comete alguns deslizes, como a dispensável inserção de gráficos, para ressaltar a preocupação de Crick com os números, ou o exagero na trama do relógio.

Repleto de belos momentos e diálogos interessantes, Mais Estranho que a Ficção é um filme que possui uma lição de moral óbvia, mas contada de maneira irresistível. Com imaginação e muito talento, Forster e Helm construíram uma obra que faz o que é preciso para ser lembrada por muitos anos: entretém, emociona e faz pensar.

Comentários (0)

Faça login para comentar.