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Críticas

Cineplayers

Alcançando fantasmas.

6,5
Não é certo se como maldição ou benefício, mas seguramente o cinema é afetado por questões de repertório. Não que a dureza, a resistência do espectador com maior quantidade de obras em catálogo não seja presente, mas uma obra, em especial se pensamos os níveis de referencialidade a que todos são expostos e introjetam, dificilmente nasce só. Melhor dizendo, e de forma mais direta: um filme nunca será o mesmo para duas pessoas, e por questões que extrapolam um senso de gosto. É que parece um haver um certo fetiche no cinema contemporâneo, supostamente lançado por Tarantino, com seu Pulp Fiction - Tempo de Violência (1994) – porque as celeumas em torno da originalidade também não surgem do vácuo –, e novamente confirmado por Mais Forte que Bombas (Louder than Bombs, 2015), novo filme de Joachim Trier; um fetiche a partir do qual se tornou cool, ou mesmo provocativo, embaralhar as narrativas para surtir algum tipo de efeito no espectador. 

Para contar a história de uma mulher morta, uma vez contestável mãe, célebre fotógrafa de guerra e insatisfeita crônica, Trier se utiliza de virtualidades. Isabelle Reed, vivida por Huppert, quase nunca está em cena presente, viva, a não ser por registros de televisão, fotografias ou lembranças. Curiosamente, como numa jogada esperta, seu ofício diz respeito a uma vertente da fotografia que pressupõe do golpe de sorte, o ''estar lá'' para dar o tiro certeiro, disparando o obturador para capturar o momento preciso que condensa tudo aquilo que se quer dar à vista. Curiosamente também, a fotografia e o cinema vivem de mortes, de embalsamamentos, e da forma como se lida com tais imagens passadas. E assim o pai e seus dois filhos têm de viver: assombrados pelo que uma retrospectiva jornalística trouxe à tona. 

E aí a forma entra em cena. Aquilo que sustenta a narrativa embaralhada assume sua estruturação. Trier nos diz que com esse fantasma feminino só há um modo de lidar: aliado à memória, surgem os pontos de vista dos 3 homens de sua vida. Mas se esse recurso tão caro ao cinema é acionado, onde foi parar a diferença? Por que o poderoso ''como eu vejo'' se torna um insosso exercício formalista de afetação, que decorre quase exclusivamente pela mistura dos tipos de retorno à figura daquela mulher? O caçula imagina o acidente que tirou sua mãe de si, o mais velho lembra dos raros momentos em que ela compartilhou seus sentimentos, enquanto o pai, para quem dificilmente se tenta dar sentido ao casamento cinzento, rememora a amargura das partidas e retornos calejados da mulher. 

O que acontece é que a multiplicidade dos recursos dá um tiro no próprio pé: a personagem complexa, e que o próprio filme expõe como multifacetada, de onde, aliás e precisamente, parecem surgir suas feridas abertas, sofre pelo unidirecionalismo de quem a lembra. Estaria Isabelle Reed sempre e exaustivamente depressiva? Tão raros os momentos em que fala por si, suas narrações tristes, embora caricatas, são os sopros mais memoráveis de organicidade a que o filme se presenteia. Deslocados, os outros 2 homens tentam encontrar uma redenção para si e entre si, para não falar de Jesse Eisenberg, cujo papel está, como sempre, muito além de suas capacidades, e cuja inclusão na trama, como ator e como personagem, assemelha-se à de um parente para quem o distanciamento não é tão desconfortável pelos anos de separação quanto simplesmente por nunca parecer ter feito parte de tudo aquilo.

Filmado aos modos de um Azul É a Cor Mais Quente (2013), com seus planos médios e primeiríssimos planos para dimensionar a intimidade e o sentimento do que é quase físico, o filme de Trier cai no infortúnio da duplicar, na forma, a sensação daquilo que é inalcançável. Se filmo um fantasma que não pode mais estar ali senão pelas marcas que deixou, fragmentando o modo que eles têm de lembrá-lo, meu gesto derrapa, e ele se torna inatingível também para nós, a quem a imagem foi destinada. Há um momento em que a personagem de Huppert se questiona o que aconteceria se desse àqueles povos uma câmera para que registrassem a si mesmos. Pareceriam eles menos vítimas do que quando ela os fotografou? Pergunto-me o que aconteceria, então, se seu filho não tivesse reservado à lixeira virtual aquelas imagens que ela mesma fez de si, num gesto simbólico que atravessa o diegético; ou seja, se o diretor tivesse optado por deixar que aquela mulher se mostrasse mais por suas próprias lentes.  

Comentários (3)

Rodrigo Giulianno | terça-feira, 19 de Abril de 2016 - 07:39

Sou fão de Huppert...vou assistir...mas que titulo ridículo é esse?

Ravel Macedo | sábado, 10 de Dezembro de 2016 - 20:18

Tive a mesma impressão. O filme propõe uma discussão em dois momentos que abordam a ausência de uma pessoa e suas consequências. Primeiro a ausência por necessidade profissional, depois pela morte, e a partir daí construir os dramas dos três personagens, isso pra mim foi muito interessante, mas a execução ficou abaixo do que poderia, por justamente faltar um maior diálogo com a personagem ausente. O problema do personagem do Eisenberg também é bem nítido, não entendi se a proposta foi mesmo essa, mas ele parece observar tudo de fora, apenas julgado a situação a partir das descobertas que faz, na verdade ele lida mais com a própria ausência na vida da família, do que a ausência da mãe na dele.

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