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Críticas

Cineplayers

Sci-fi noir.

8,5
Muitos dos cinéfilos, mesmo dentre os apaixonados por filmes e diretores antigos, não dedicam a merecida atenção com o cinema mudo para além dos clássicos mais consagrados. Não é sempre que nos encontramos com disposição para tanto. É fácil, contudo, perceber todas as qualidades de expressividades e inventividades visuais e narrativas de costume invocadas como aspectos superiores do cinema mudo, como se alguns de seus segredos houvessem se perdidos na passagem  para o sonoro, em um filme como O Mais Perigoso dos Homens (Most Dangerous Man Alive, 1961). Que justamente um dos pioneiros em desbravar os caminhos da sétima arte na plenitude de sua infância foi dirigir no raiar da década de sessenta, quando a maioria dos seus companheiros mais antigos de geração se encontrava mortos ou aposentados. Allan Dwan continuara para sempre um detentor de tais segredos não importando quantos anos se passassem.

Lembrado como o homem que teria dirigido mais de mil filmes (o IMDB lista-o com 406), Allan Dwan parece compilar meio século de cinema nesse que acabou sendo seu último trabalho. Ao contrário de colegas sufocados pela indústria por conta de suas ambições artísticas sem freios (Griffitt, Stroheim ou posteriormente Orson Welles), Dwan acolheu e foi acolhido por produções de recursos minguados, passeando por gêneros tidos menores. E adaptando-se aos códigos e convenções do chamado filme B, sem deixar reduzir ou apagar seu talento irreprimível. Que sua filmografia seja repleta de obras excelentes pode ser comprovado em gêneros tão diversificados, desde certa quantidade de westerns que reforçaram o seu prestígio (Homens Indomáveis [Silver Lode, 1954] sendo o possível ponto alto) aos capa-e-espadas no começo da carreira com o lendário Douglas Fairbanks. Ou farsas e comédias algumas hoje clássicas (Chutando Milhões [Brewster's Millions, 1945]). O drama de guerra As Areias de Iwo Jima (Sands of Iwo Jima, 1949), que conferiu  a primeira indicação ao Oscar para John Wayne, ou o noir delirantemente belo e em cores O Poder do Ódio (Slightly Scarlet, 1956), e assim por diante. 

Most Dangerous Man Alive parece tirado de uma história de alguma revista pulp de baixa circulação. Começa nos sugerindo um filme de gângsteres em tons noir, o mafioso Eddie Candell escapando da polícia antes de ser executado para cumprir a sentença por um crime que não cometeu, depois da traição dos ex-companheiros (o que é mostrado através  do recurso do flashback). Na fuga, se esconde em uma área onde se realiza testes envolvendo radiações nucleares. Uma explosão é detonada, e o anti-herói sobrevive com  o seu corpo absorvendo elementos radioativos que o tornam  de aço, deixando-o indestrutível. 

Ocorrera antes referências à era atômica em filmes noir, como no famoso desfecho de A Morte Num Beijo (Kiss Me Deadly, 1955). O que por ser tão novo à época propiciava especulações quanto ao desconhecido e os rumos que a humanidade poderia tomar, de uma forma análoga às grandes navegações ou a corrida espacial. O cientista responsável pelo teste responde aos perseguidores de Candell que já se fotografara o lado escuro da lua, e as leis naturais e o equilíbrio não mais existiam. Most Dangerous Man Alive se assume como ficção cientifica, com o homem  inteiramente de aço decidido numa urgência alucinada a se vingar dos subordinados que o traíram. O protagonista não tem a aparência física alterada, mas anda pelas ruas como um monstro de filme japonês apocalíptico provocando estragos em inimigos e rechaçando o poder de fogo da polícia. Sem prejuízo qualquer das características de filme policial-noir, com uma austeridade que em nada  recorre aos exageros visuais ou a menor afetação que a sua premissa implausível poderia desencadear, num estilo reconhecidamente seco e direto. A temática absurda antecipa a de muitos seriados, porém aqui existe para que se construa uma história de vingança e acossamento, com  uma fruição e precisão que torna Most Dangerous Man Alive ainda mais singular e brilhante. E adquire conotações filosóficas quando Candell se dilacera entre a vaidade de nada conseguir o deter, e a exasperação de por mais que tenha se fortalecido em sua condição nova, ela é insuficiente para controlar o universo em que ele  se move. Eliminar adversidades pode levar a criação de outras tantas. O que inclui a utilização do espaço cênico como uma paisagem  em confronto com o ser mutante, e na qual ele se encontra à deriva, em meio a cercos e evasões.  Sempre haverá algo maior sobre o homem. E perder a própria humanidade bem deve ser o pior dos infortúnios. 

O que guarda semelhanças notáveis com outro clássico da ficção cientifica, O Incrível Homem que Encolheu (The Incredible Shrinking Man, 1957),  que Jack Arnold dirigiu quase no final da década anterior. Estão neles os dois os elementos de fantástico, o homem reduzido à fragilidade perante o cosmos, e o senso de aventura em um mundo de incertezas. Most Dangerous Man Alive se mostraria com bastante potencial e adequado a algum produtor que hoje em dia se decidisse por uma refilmagem para apresentá-lo a uma nova geração. Por sinal, é o remake que está preparando o personagem –diretor de O Estado das Coisas [Der Stand der Dinge, 1982], o filme de Wim Wenders que tratava sobre a possível morte do cinema clássico, ou de um cinema tal como o conhecemos antes. Na certa, uma refilmagem atual eliminaria as qualidades inextricavelmente simples, a sensibilidade apurada típica dos grandes mestres e a concisão de quem não profere nem mostra além do essencial para angariar a simpatia de um público. Nesse sentido (e só aí) é preferível que permaneça como um dos tesouros bem secretos da arte de Allan Dwan.

Comentários (2)

Declieux Crispim | quarta-feira, 08 de Fevereiro de 2017 - 09:41

Belíssima crítica. Conheço pouco do diretor e gosto bastante. Vou procurar este.

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