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Críticas

Cineplayers

Von Trier continua fazendo cinema importante e cheio de verdade desagradável.

9,0

Embora não tenha revolucionado a arte de fazer cinema como o fizeram Godard, Truffaut e outros autores franceses com a Nouvelle Vague no final dos anos 1950, por exemplo, Lars Von Trier e seu inventivo Dogma 95 trouxeram uma sensação de ar fresco ao cinema mundial, com regras rígidas e que exigiam muito do diretor para estas serem seguidas. Dogville foi lançado em 2003 com um pouco do sangue dessas regras e um pouco de sangue do teatro. Alguns discutem se aquele filme realmente deveria ser considerado cinema; muitos possuem simplesmente aversão ao trabalho realizado pelo diretor; uma corrente razoavelmente grande idolatra o filme.

Dessa última corrente, eu faço parte. Não pela sua engenhosa proposta estética. Isso de fato ajudou a dar destaque ao filme e a manter discussões em torno dele. O genial de Dogville são seus personagens e, acima de tudo, os diálogos que eles desempenham entre si. A resolução do problema de Grace nos momentos finais de Dogville é simplesmente sensacional, apresentando textos profundos sem fazer o filme soar forçado ou auto-importante, visto que o diretor preparou o espectador para aquilo. Em Manderlay não é diferente, embora não haja um diálogo no nível daquele, ainda assim há conteúdo suficiente que prenda o espectador e mantenha o interesse, desde que este entenda a proposta do filme.

Enquanto Dogville pode ser considerado dono de um tema universal, Manderlay funciona como uma crítica aos Estados Unidos de forma muito mais direta (“[...] os Estados Unidos não estão preparados para a libertação dos escravos agora [1930] nem estarão daqui a 100 anos”). Sendo assim, o recado é mais explícito e a mensagem do filme é muito menos abrangente. Seria isso uma crítica de Von Trier às fortes críticas que Dogville recebeu por lá? Manderlay sem dúvida afunila muito mais sua mensagem, dando maior valor ao lado político do que aos seus personagens.

E isso acabou enfraquecendo um pouco os papéis coadjuvantes da história. Além do tempo de filme ser menor em quase uma hora, o que por si só tira tempo de todos os personagens, a participação do núcleo coadjuvante mostra-se menor, embora todos eles tenham presença forte na tela. Há várias pequenas tramas importantes (a menina adoecida, as sessões de votação, etc.), porém uma grande parte dos personagens simplesmente termina sendo mostrada superficialmente. Por exemplo, o negro em fuga tem sua história resolvida perto do final, de forma previsível e veloz, não agregando muito ao todo.

Como não poderia deixar de ser, novamente a estética de Dogville foi empregada, mantendo o padrão que se estenderá a Wasington, a terceira parte da trilogia. Ainda que a estética seja a mesma, o feeling dos cenários é bem diferente, o palco parece ser mais amplo e a variedade de construções também é maior, fazendo com que os sets de filmagem mostrem-se mais sofisticados. Ainda assim, permanecem as marcas no chão e o fundo negro em todo o filme, estética abominada pelos puristas ou pelo público casual. Os planos são bastante apurados, como na cena envolvendo uma relação sexual (sem pudores) entre dois personagens. Não é um estilo que gostaria de ver se estendendo a um grande número de filmes, mas a originalidade dele quando empregada ao cinema realmente é algo a se destacar. Aqui, obriga-se aos diálogos, mais do que nunca, manterem a atenção do espectador, já que este não terá cenários para ficar distraído.

Quando Nicole Kidman revelou que não poderia participar das filmagens de Manderlay por conflitos em sua agenda, muitos fãs de Dogville ficaram preocupados. Bryce Dallas Howard, que apareceu recentemente em destaque para o mundo com sua grande performance em A Vila, veio a ser uma substituta à altura. A atriz tem características físicas semelhantes à Grace original (pele bem clara e cabelos de cor parecida), e talento suficiente para impor-se em cenas difíceis (e há várias delas), ainda que a experiência não seja muita. Será uma grande atriz um dia se continuar por esse caminho, e ainda vencerá prêmios importantes.

Em relação ao tema: Manderlay fala sobre racismo. Von Trier mostra como os dois lados – negros e brancos – possuem falhas de caráter. Isso não significa que o cineasta resolva ficar em cima do muro, fazendo afirmações genéricas sobre o assunto. Isso qualquer cineasta comercial já faz - e convenhamos, não é lá muito difícil de fazer. Von Trier joga seus personagens até o fundo do poço, mostrando na cara de cada um deles a hipocrisia, vaidade, arrogância, de forma nada sutil. O que pode ofender o espectador é o fato de o filme poder servir como um espelho de sua platéia. Obviamente todos nós somos donos de defeitos humanos, não há como ser diferente, mas ainda assim não é muito agradável quando, mesmo que indiretamente, joguem isso em nossa cara. E se o recado é dado de forma explícita para os americanos, deve ser ainda mais desagradável para eles.

E, afinal, esta é a grande vitória - até aqui - desta trilogia de Von Trier. Não ceder a comercialismos que inibam a linguagem de ninguém. Através de seus personagens vibrantes e cheios (lotados, sobrecarregados) de conflitos essencialmente humanos, recebemos, como poucos têm coragem de nos entregar ultimamente, mensagens importantes e necessárias. Isso sobre uma camada estética interessantíssima, original e, principalmente, perfeitamente interpretada. Von Trier não é o cineasta perfeito, mas o que ele está fazendo com sua trilogia não fica muito longe disso.

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