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Mank

(Mank, 2020)
7,0
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133 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Hollywood e os macacos do tocador do realejo

8,0

Esse é um primeiro texto. Crítica escrita no calor do momento, logo após ver esse que me parece um filme merecedor de revisão e tempo maior de reflexão, que contemple sua complexidade narrativa. Mank (2020) é bastante metalinguístico; o tempo todo se referencia, ao clássico Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), à Hollywood dos anos 1930 e 40 (haja easter egg) e aos seus autores, tantas vezes a tantos deles ao mesmo tempo. A natureza da ressalva (inédita em 10 anos) destacada nesse parágrafo é uma primeira impressão ambígua e agridoce. De que poderia ter visto algo maior — ainda maior, pois o Mank que se me apresenta já é bem grande.

O primeiro motivo de desconforto é o desfecho. A última cena. Uma conclusão tão complacente, tão contraditória e tão estranha ao cinema cerebral de David Fincher, mas também, de certa forma, provocativa e condizente com críticas que o filme veicula. Percebe a complexidade? Enfim, esse desconforto se baseia em alguns aspectos: sua completa imprecisão histórica e defesa excessiva do personagem-título (o que será discutido adiante); e ser uma conclusão tão desprovida de inventividade. A inspiração que existe ali é a inspiração em 9 de cada 10 cinebiografias que invadem os cinemas toda temporada de Oscar e são presenças constantes na premiação apesar de medíocres, tipo O Jogo da Imitação (The Imitation Game, 2014). Quando o texto desce contando o fim da vida de Mank (Gary Oldman), sucedendo um choramingo mentiroso e vitimista sobre o personagem "injustiçado", a sensação é de dissabor.

Gary Oldman: cara de indicação ao Oscar

Inclusive esteticamente, espera-se mais de David Fincher. Pelo que ele fez não ao longo da carreira, mas nesse mesmo Mank. O fã de cinema se ajeita na poltrona (gestual de expectativa) logo que o filme começa (depois de um texto sobre tela preta, risos) e tudo emula os primórdios da Velha Hollywood: a cartela de abertura, a fotografia em preto-e-branco, a marca de cigarro que pula no canto superior direito, a trilha evocativa de suspense quando uma comitiva leva o protagonista para uma casa de campo isolada, a transição em fade out. O cabeçalho de cena, particularidade que mesmo o espectador não familiarizado com um roteiro de cinema deve reconhecer, é datilografado na tela ao som de uma máquina de escrever. O elemento, necessário para situar o espectador nos múltiplos saltos temporais e locais que ocorrem no longa, prenunciam visualmente a ode que Fincher prestará não somente a Herman J. Mankiewicz, como a toda a categoria que ele representa ao longo da projeção  — e só se apresentará como conflito principal da obra no final.

Afinal, Mank corre em duas linhas temporais paralelas, com tramas e subtramas próprias que, a princípio, nem parece que vão se unir no último ato. Uma em 1940, quando Herman Mank é hospedado em um rancho com o compromisso de escrever o roteiro de um filme, o filme que quiser. Esta é sua única liberdade: acamado após um acidente de carro, Mank é impedido de tomar bebida alcoólica pela assistente Rita (Lily Collins) e pelo editor John Houseman (Sam Troughton), seu tempo para escrever é encurtado em cima da hora e a presença de seu contratante paira no ar de forma tão grave quanto sua voz, ora sublinhada por efeito de eco. Este homem é Orson Welles (Tom Burke), tão jovem e prodigioso quanto Herman é envelhecido e decadente. Welles será diretor, produtor, protagonista e roteirista do filme que Mank escreve em clausura. A outra linha temporal percorre vários episódios ao longo dos anos 1930 e retrata um outro Mank  — um Mank móvel, e isso é muito importante para David Fincher.

Mank promove imersão na Era de Ouro de Hollywood

Mobilidade no cinema fincheriano

Um elemento chave da obra fincheriana é a relação profunda que seus personagens têm com a própria movimentação e a movimentação de câmera. O Nerdwriter mostra isso em vídeo e lembra o conselho (em forma de fração matemática) que o cineasta deu para a atriz Robin Wright quando ela estreou na direção de House of Cards (2013–18): "Comportamento sobre tempo." Para Fincher, a relação do comportamento com o tempo no espaço fílmico "é o elemento mais importante de todo material que você lê, interpreta e dirige". Traduzindo, a forma como uma personagem se comporta em cena é fundamental para se entender quem ela é, o que persegue e o que sente. Fincher entende que a emoção no cinema é uma expressão física e, para evocar esse sentimento no espectador através da linguagem cinematográfica, a câmera precisa estar em movimento com seus personagens — ou não, e a imobilidade da câmera haverá de dizer algo a respeito deles. Mais que estilo, estética ou dinâmica, a movimentação de câmera porta semântica, e na obra de David Fincher isso é tratado de forma obssessiva.

Assim, o imenso abismo entre o Herman entrevado na cama no Rancho North Verde e o Herman que se movimenta como um louco pelos estúdios da Velha Hollywood nos ajuda a entender quem ele era. E quem há de negar que esse Mank dos anos 1930 é um personagem de ação? Como tal, todas as suas qualidades são encenadas: ele dita seu roteiro em voz alta, ele joga compulsivamente, ele bebe até cair, ele acorda num castelo e a ação continua. Até os sentimentos do personagem se expressam de forma cinematográfica: seu amor por Sara (Tuppence Middleton) invade a tela num "balãozinho" e sua relação com Marion Davies (Amanda Seyfried, ótima) se transforma a cada troca de olhares, elogios e flertes. David Fincher sabe bem o que fazer com esse comportamento dinâmico de seu protagonista.

Amanda Seyfried na melhor atuação de sua vida

No roteiro escrito por seu pai, Jack Fincher, Mank se refere à equipe de roteiristas que lidera na Paramount como "banda". O grupo é formado por dramaturgos tão históricos (como George S. Kaufman, Ben Hecht, S. J. Perelman e Charles MacArthur) que seu roteirista júnior é o irmão caçula de Herman, Joseph L. Mankiewicz (Tom Pelphrey), futuro vencedor de 6 Oscars e autor da obra-prima A Malvada (All About Eve, 1950). No cinema de David Fincher, o grupo é encenado como uma "banda" de free jazz, gênero que embala a trilha sonora dessas cenas. Vemos cada integrante aproveitar sua "deixa" para brilhar com uma linha de diálogo afiada e apresentando uma ideia melhor que a outra quando reunidos com o lendário David O. Selznick (Toby Leonard Moore). Sem dizer, o diretor usa a improvisação e o entrosamento do jazz como metáfora do trabalho em conjunto que os roteiristas realizavam na Paramount da Velha Hollywood, raro e primoroso como o som de Nova Orleans.

Aqui, David Fincher investe no ritmo e na trilha sonora como base principal de construção de sentido (algo muito parecido com o que Adam McKay fez em A Grande Aposta, 2015). Mank é muito idiossincrático, faz inúmeras referências a fatos históricos, conflitos políticos, citações literárias, personalidades e obras daquele contexto específico, de transição do cinema mudo para o falado. Em última instância, o longa-metragem é um prato cheio para quem gosta de pesquisar e significar essas correspondências, mas desconhecê-las não compromete o entendimento da história, pois são tratadas meras acessórias. O escopo da trama, que orbita as desventuras de Mank, se desenvolve de forma clara e objetiva. A subjetividade que enriquece a obra corre no subtexto.

Mank conduz o espectador numa verdadeira imersão no sistema de estúdio da Era de Ouro do cinema estadunidense. O que só é possível graças à mobilidade de Herman em sua era de ouro particular. Nesses flashbacks, sua influência alcança o segurança, o figurante desempregado e o megaprodutor Louis B. Mayer (Arliss Howard). No presente do filme, Herman é um pária e nutre um profundo desprezo pelo fundador da MGM. Aos poucos, as linhas narrativas paralelas se tornam mais curtas. Isso as aproxima em termos de tempo e em termos de atmosfera; o passado pulsante vai se tornando melancólico como o presente. Até que essas tramas convergem como causa e consequência e explicam o paradoxo de Herman: a queda que o levou ao fundo do poço nos anos 1930 inspirou a obra de sua vida, Cidadão Kane, em 1940.

Atenção! Spoilers a seguir!

Charles Dance rouba a cena na melhor cena do filme

Mank e Kane, filmes espelhados

Essa rima entre o presente e o passado é uma qualidade que Jack Fincher põe na boca de Herman. "A narrativa é um grande círculo", diz o protagonista para justificar a não linearidade do roteiro de Cidadão Kane. Nesse arroubo de autorreferencialidade, Fincher pai grita para o público que o roteiro de Mank espelha o roteiro de Mank. De forma bem evidente em termos de estrutura e com algumas alusões visuais claras a Cidadão Kane. E há um outro espelhamento, mais ousado, que os Fincher realizam dentro de Mank: o de comparar Willie Randolph Hearst com Orson Welles.

Proprietário de um conglomerado de mídia, Willie Randolph Hearst é o típico homem branco, anglo-saxão e protestante (WASP). Ele lidera a elite que, em plena ressaca da Grande Depressão de 1929, corta salários do operariado do cinema ("ralé" em que os roteiristas se encontram, sendo constante ironizados por produtores e diretores) e demoniza o candidato socialista que propõe taxar os ricos para mitigar a miséria dos pobres. Para frear o político de esquerda, Hearst e Mayer usam a máquina de Hollywood com propagandas que manipulam o eleitorado. Numa bela alusão com o nosso presente em 2020, o finado Jack Fincher (1930 - 2003) condena esse embrião de fake news frontalmente.

A contradição que encerra Mank está justamente no antagonismo feito a Orson Welles: a acusação de que ele não teve participação no roteiro de Cidadão Kane e ganhou um Oscar injusto. É amplamente documentado que Welles fez bastantes mudanças no texto de Herman, o suficiente para conferir-lhe a coautoria do roteiro. Porém, Jack Fincher insiste na acusação feita por Pauline Kael (nos anos 1970 e desmentida na mesma década), e David Fincher sustenta a tese equivocada do pai até o desfecho do filme, manipulativo em prol de uma mentira histórica. Por quê?

A Hollywood de Fincher é o oposto da Hollywood romantizada de Tarantino

Era Uma Vez... a Hollywood de Fincher

Incrivelmente, por mais que desgoste desse desfecho, eu vejo coerência nele. Mank é, acima de tudo, um drama que prega o respeito pelos roteiristas. Portanto, faz sentido que David Fincher opte por não macular o que o pai escreveu. Dada essa decisão tão pessoal, é coerente também que o diretor de Se7en - Os Sete Crimes Capitais (Se7en, 1995) e Clube da Luta (Fight Club, 1999) abandone seu cinema frio e metódico, se deixe levar pela emoção e abrace o melodrama barato na conclusão. Para ser justo, outro aspecto ali presente, e que é positivo, é o humor ácido —  uma característica da obra de Herman J. Mankwiecz que o filme todo emana. Assim, David Fincher encerra de forma cínica um longa-metragem que se propõe inteiramente crítico ao período que retrata.

Nesse sentido, Mank é contraparte de Era Uma Vez Em… Hollywood (Once Upon a Time in… Hollywood, 2019). Amado pela indústria e vencedor de 2 Oscars, Quentin Tarantino lança mão do revisionismo histórico mais uma vez, agora com o intuito de conciliar os imensos conflitos políticos, sociais e cinematográficos dos Estados Unidos de 1969 e assim concretizar uma fábula solar que é uma verdadeira carta de amor para Hollywood. Apesar do imenso talento, David Fincher briga com todo mundo no meio e por isso encontra dificuldades para realizar seus projetos — assim como seu pai Jack, que não viveu para ver Mank no cinema. Não à toa, os Fincher seguem um caminho diametralmente oposto ao de Tarantino: abraçam a condição de párias e realizam um filme amargo, sombrio, que destrincha como Hollywood é classista em si e para fora, interferindo de forma antidemocrática nos rumos políticos do país, e termina detratando um dos grandes patrimônios artísticos dos EUA, Orson Welles.

Quando a cena final de Cidadão Kane desfaz seu mistério e descobrimos que "Rosebud" é o nome do trenó de Natal de Charles Foster Kane, fica a mensagem de que os bens materiais se esvaem no fogo e as boas lembranças não se esvaem jamais. A conclusão otimista de Mank se manifesta de forma diferente: as memórias de Herman são ruins e sua perenidade acontece quando o escritor as transforma numa obra-prima do cinema. Desde Alien 3 (Alien³, 1992), David Fincher tem feito parecido em sua luta constante na indústria. Ele se recusa a servir de macaco do tocador do realejo em Hollywood.

Comentários (4)

Rodrigo Torres | domingo, 06 de Dezembro de 2020 - 13:12

Queimou o fusível que controla meu poder de síntese.

"Se tivesse mais tempo, eu faria mais curto."

Alan Nina | segunda-feira, 07 de Dezembro de 2020 - 00:26

Imagina se tivesse tempo, texto incrível.

André Araujo | segunda-feira, 07 de Dezembro de 2020 - 23:36

Dá para emoldurar cada um dos frames que o Rodrigo escolheu para ilustrar o texto. Ansioso para ver esse!

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