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Marte Um

(Marte Um, 2022)
8,0
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49 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Essa parada tá muito além da sua realidade

9,0

A cada nova estreia da Filmes de Plástico, a produtora reafirma o seu lugar no mercado. Claro que isso também quer dizer que a pressão pela qualidade é diretamente proporcional à expectativa, mas isso, pelo visto, está longe de ser um problema para os mineiros de Contagem, que já não querem comer quieto, nem muito menos pelas beiradas. Marte Um (2022) é um filme que simboliza definitivamente esta perspectiva: uma abocanhada na história branca do cinema brasileiro. Fincado na primeira semente construída em Filmes de Sábado (2009) e sustentado por tudo o que circula os outros trabalhos da produtora, também percebe o momento histórico que estamos vivendo e se posiciona visualmente de uma forma bem especial sobre o nosso tempo. 

Apesar da eminente ascensão, a diferença de outros artistas que se autocitam, Gabriel Martins sabe que boa parte do público que foi aos cinemas ver seu novo filme não está familiarizado com o movimento de cinema na cidade de Contagem, portanto, um de seus acertos, logo inicial, é colocar o espectador adentro naquele espaço e diante dos significados que o mesmo representa aos personagens. Introdução esta que já pode ser considerada parte da poética do autor – vide os primeiros minutos de No Coração do Mundo (2019), da produtora, e se queremos ir mais longe no cinema também de seus vizinhos Affonso Uchoa e João Dumas. 

Em Marte Um (2022) estamos todos inserido num período “apocalíptico” pós eleição do Bolsonaro, neste contexto, conhecemos os Martins, uma família negra de pais trabalhadores e de filhos muito perspicazes. A partir da rotina de cada um deles, a narrativa nos dá a oportunidade de abrir-se ao entorno que os circula, e que também os conecta. No caso de Eunice (Camila Damião), a filha mais velha, a intensidade da música funk de Mc Carol – parceira de outras empreitadas – dá o ritmo moderno de seu romance. Sua compenetrada atenção às aulas na universidade de Direito demonstram uma nova fonte referencial além da mesa de jantar, e, finalmente, sua expressão aérea diante da conversa familiar denota uma vontade cerceada de partilhar seus novos pensamentos. Este microfoco põe-nos adentro de Contagem, de toda a família, e do próprio entorno ficcional construído pela Filmes de Plástico sobre este ambiente, quase uma “Macondo” do cinema nacional. 

Apesar da evidente proximidade entre os principais cineastas e parceiros da produtora, estão longe de serem os mesmos, ou muito menos de entregarem filmes parecidos. São sim obras complementares, mas não há qualquer choque. Por um lado, André Novais de Oliveira parece querer incorporar sua narrativa num tempo real, e neste intervalo temporal desenhado é capaz de destrinchar, com a sofisticação que apenas figuras como Lucrecia Martel ou Apichatpong Weerasethakul conseguem, as sutilezas escondidas dentro do entorno familiar. Como perfeitamente se vê na lindíssima cena onde o próprio realizador – personagem protagonista de Ela Volta na Quinta (2014) – abre seus sentimentos à sua mãe Maria José Novais Oliveira; por outro lado, Gabriel Martins é dono de um cinema explosivo, não se abraça a nenhum tempo, constrói várias dimensões temporais dentro de sua obra, arranca seus personagens da normalidade, tirando-lhes seus limites, a ter em suas escolhas o poder de superá-los ou não, e as consequentes reverberações destas, o principal mote narrativo central de cada uma de suas películas. 

Com isto, não pretendemos afirmar que esta fronteira diegética precisa ser vista como a quebra da barreira do som dos pilotos de Top Gun: Maverick (Top Gun: Maverick, 2022). Tanto No Coraçao do Mundo (2019) como Marte Um (2022) ensina-nos que o limite é algo totalmente social e também subjetivo. Provavelmente um rapaz branco e rico de Belo Horizonte não enxerga num assalto a possiblidade de ascensão, como via Selma (Grace Passô) no primeiro, ou para o mesmo jovem tornar-se um astrofísico não é uma barreira impossível como para o pequeno Deivinho (Cícero Lucas) em sua última obra. 

Enquanto o mundo vive um caos político, e parece tudo estar numa maré de negatividade, Marte Um mostra-nos que o poder de afeto construído pela vontade de superação dos limites dos irmãos Martins eleva a experiência. A possibilidade de sonhar livremente não pode ser cerceada. O sonho de Deivinho em viajar pelo espaço é genuino, e por mais que as dificuldades sejam óbvias, o caminho precisa ser percorrido, já o amor de Eunice pela sua namorada, deve ser abraçado como o amor de mãe, e não questionado como um desconhecido. Ambos os sonhos levam os dois a unirem-se, levando-os além do que está proposto como normativo a uma familia negra padrão no cinema brasileiro.   

A montagem, conduzida pelo próprio Gabriel Martins, conduz os núcleos familiares muito sabiamente, tudo o que é vivido por cada um dos membros dos Martins fora da casa chega à sala de alguma forma. Sabemos, por exemplo, que a aparente inofensiva conversa de Wellington (Carlos Francisco) com seu colega Flavio (Russo Apr) sobre ser mais ativo politicamente terá – e tem um encontro marcado com outra sequência no futuro – tamanho. O realizador, produtor, roteirista e montador abre arestas, e as encerra em momentos próximos ou distantes na linha do relato. Por mais que a coloquialidade da linguagem dê sempre uma impressão de um correr solto da história, os laços sanguíneos entre os quatro membros da família são também pontes alegóricas de proximidade. 

Afinidade esta que é colocada em xeque pelo decorrer dos acontecimentos. Se há uma questão que martela a mente do espectador ao fim do visionado é: afinal, é possível uma comunicação plenamente honesta entre pais e filhos? Por mais que pareça um homem coberto de boas intenções, a dificuldade de comunicar do patriarca é linha central nas dificuldades da relação vivida no seio familiar. O fato é que a obra demonstra muito bem como todos temos uma vida além de casa, a nossa rotina pesada muitas vezes dificulta colocar-nos na pele do outro, não nos damos a oportunidade de expandir nosso horizonte, porque estamos sempre focados na primeira pessoa, sem embargo. Talvez uma das maiores belezas do cinema seja o privilégio de experimentar diversas visões, perceber as razões de cada uma das personagens, e, com sorte, consequentemente desenvolver uma empatia pelas escolhas, ainda que equivocadas, de cada um deles.   

Marte Um (2002) é uma obra acima de tudo sobre afeto. Tendo-o como fio condutor da mensagem, superar os limites torna-se mais palpável.  Entretanto, há de ser cuidadoso, não estamos aqui a tratar de peças cafonas hollywoodianas sobre superação acima de tudo como razão única de felicidade, o substantivo da obra de Martins não é concluir que somente a realização do impossível traz-nos plenitude, o importante não é a chegada, mas sim o processo, os erros fazem parte do caminho, da mesma forma que se constrói o cinema, exatamente como desenha-se a Filmes de Plástico nestes últimos anos.  

Escolher viver os sonhos é um privilégio social de poucos, mas que pode ser em alguma medida amenizado caso haja um abraço, um sinal de apoio. O sonho não precisa ser vivido sozinho, e é isso também o que o filme pretende ressignificar. Muitos pais e mães negros viveram uma vida de barreiras e impedimentos por todos os lados, educam seus filhos minando-os da possibilidade de experimentar estas questões para poupar-lhes uma possível frustração, e criam-lhes cascas dentro de casa para que estejam preparados para as ruas, o não de uma mãe, muitas vezes é apenas uma defesa à cria. 

Gabriel Martins se propõe a afirmação como cineasta – sem tentar elucubrar em zonas pessoais, mas talvez também até como jovem pai –  e que há outra possibilidade de pensar a construção do afeto dentro de uma família negra tanto ao que se refere a própria identidade, mas também como representação cinematográfica. O amor e o sonho também podem pertencer a realidade negras, é preciso permitir mais carinho, mais abraços. A educação sobre estes gestos forma a confiança de que se tudo vai mal lá fora, aqui dentro é sempre um espaço de apoio, perdão, carinho e compreensão, afinal de contas haverá sempre viva a esperança de acordar num dia melhor, longe do apocalipse político, perto do cinema – ou do futebol, ou da astrofísica - e ao lado de quem se ama. 

Comentários (2)

Alexandre Koball | segunda-feira, 30 de Janeiro de 2023 - 09:35

Filmaço, vi no fim de semana.

Luiza Rezende | quarta-feira, 01 de Fevereiro de 2023 - 10:18

belo filme e belo texto!

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