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Mateus

(Mateus, 2017)
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Entre gargalhadas e lágrimas

10,0

A arte resiste. Assistir a Mateus de Dea Ferraz é ter a certeza de que o artista tem uma missão, e se encumbe da mesma, para deixar intacto seu ofício. Um olhar passageiro em uma viagem da qual Dea nos leva pelos rincões do país, ciceroneados por Claudio Ferrario e Odilia Nunes, que, ao mesmo tempo que comandam, também se deixam inebriar por algo que é parte integrante do trabalho deles, e também é sonho e realização do próprio lugar. Uma experiência incomum de intensidade artística que só se enriquece com o olhar externo, com a influência que a presença deles ali impõem à narrativa.

Um road movie construído pelos afetos angariados em cada porto que se para, Claudio e Odilia desvendam um universo de "mateus" e "catirina", personagens oriundos da festa do maracatu, uma espécie de mestres de cerimônia do Brasil rural, folclórico e imprescindível para a realização do mesmo. O filme transborda alegria com a busca dos dois artistas oriundos da "palhaçaria" para encontrar remanescentes clássicos de uma cultura que todos lutam para manter, e que hoje é essencial: fazer rir. E através da catarse que o filme proporciona, acessar todas as outras emoções possíveis, que brotam facilmente e de maneira genuína, assim que percebemos a fagulha da resistência que cada um desses encontros mostrados pelo filme o é.

Com a montagem de Bia Baggio, o filme é enfileirado em uma crescente de interesse, sedução, prazer rasgado até chegar na emoção mais empática, ao constatar a luta coletiva por uma arte que não está representada ou defendida por nenhum grande espaço hoje; através desse trabalho de montagem, o filme constrói não apenas esse crescendo de sensações, como também um ritmo ininterrupto de fluxo de eventos, sem jamais se atropelar ou não proporcionar respiro à sua narrativa. Também a fotografia (a cargo de Leo Crivellare e Marcelo Lacerda) nos situa numa atmosfera de um colorido muito particular nordestino, além de intercalar a sua série de climaxes, a pureza e a liberdade que representam o céu azul e a finitude das estradas rasgadas pelo fusquinha da dupla.

Como os documentários mais eficientes em suas totalidades, o roteiro do filme é coassinado por Dea e Bia, que construíram o manancial de emoções de todas as searas na ilha de edição, no que também contribuíram para o mesmo o trabalho do carisma de cada um dos "mateus" mostrados no filme (Mocó, Zé do Bibi, Martelo - esse último quase um capítulo a parte dentro do filme, pela complexidade com que desdobra dentro e fora da caixa cênica criada pro projeto) mas também as figuras de Cláudio e Odilia, especialmente ela, quase uma força da natureza tanto montada quanto descaracterizada, alguém que deveria ser (re)descoberta pra ontem, e que transborda de emoção na emblemática sequência onde seu corpo é aceito numa cultura tão tradicionalmente 'machocêntrica' quanto a mostrada pelo filme.

Dea além de tudo não se furta em promover o debate interno, de maneira extremamente inteligente, sobre um universo restrito ao homem como a da figura mostrada pelo filme. Sempre interpretado por homens, mesmo a figura feminina da "catirina" foi criada nesse registro de misoginia que Odilia com muita delicadeza tenta entender ao debater com cada um dos veteranos atores. O resultado na tela é da ordem da inocência de construção, embora constitua uma manutenção do patriarcado que está pronta a ruir, seja com o futuro que o filme desenha no fim ao observar o grupo de crianças já conectadas ao movimento, seja com a presença fulgurante de Odilia, não apenas a melhor atriz da III Mostra SESC de Cinema, mas uma figura singular tanto em talento como em promover a discussão sem jamais deixar de encantar com sua arte e sua emoção.

Mateus, o filme, sai de Paraty se impondo como o grande evento do festival, em importância artística e política, sem uma pitada sequer de panfleto e absolutamente consciente de seus múltiplos papéis de entreter, debater e emocionar com muita simplicidade. 

Crítica da cobertura da 3ª Mostra SESC de Cinema de Paraty

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