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Críticas

Cineplayers

O último a cantar a história.

8,5
Pouco sabemos, a princípio, a literalidade encarapuçada pela negativa que intitula, ou antes modula sadicamente, este Maus Momentos no Hotel Royale (Bad Times at The El Royale, 2018). Se por vulgaridade megalômana, aproximação escópica ou funcional espelhamento dos termos o cinema já pôde, e alguns de seus espécimes ainda são capazes de colocá-lo em tais termos equiparativos, ser medido e estimulado por aspectos próprios à sexualidade, o filme de que falamos é o “quase perfeito” grau de conjugação que faz balançar um extremo erotismo e arrefecer, ainda que oscilante na dramatização, a pornografia. Não se cansa de ver – sim, falamos do ato só aparentemente não prolongado de ver –, o olho enlouquece com as estratégias sagazes de visualidade e sobrevivência e é magneticamente atraído pelas brechas e vidros falsos que num outro momento lhe pareceriam horrendos ao cercear a intimidade. Mas é um jogo de limites e bordas, o da sexualidade. Descobre-se, em pânico, a não-continuidade, o desejo, o inevitável entre um amante e outro por aquilo que seus corpos separam. Aquilo não sou eu, e, por algum motivo, é. Que é a excitação? Não tão-somente à resposta do corpo ao que vê, mas também àquilo de invisível que o erótico lhe lança e, segundo, ao que ainda não viu, mas que a ânsia já é capaz de instalar numa projeção cega.

Que esta obra de Drew Goddard seja, pois, a prova de um vigor “como nunca se viu antes” (não, obviamente, porque nenhum antecessor o alcançou, mas porque toda grande execução perturba as formas anteriores de visibilidade e as presentes do mundo): muito como Roland Barthes chegou a propor para a literatura uma teorização e observação cuidadosas do leitor tanto quanto das narrativas ou personagens das páginas que ele lê, eis aqui uma prova de que as vibrações de uma película podem eriçar muito mais que apenas os nervos da memória e seus repertórios, o cérebro, a atenção. Seria preciso esmiuçar cautelosamente os braços, o peito abrigando o compasso cardiovascular, as pernas e a – pasmem – boca de um dito espectador para abranger a sanguinolência que tomará como manjedoura e inferno o El Royale. Se todo filme é capaz de simular a sistematização de um caos, de linhas de encontro, quer-se aqui o preciso avesso, e a sugestão do estalido das máscaras caindo ao chão pode fazer do “nada é o que parece” noite adentro um gracejo de sugestão meramente publicitária. “Nada é o que se espera” poderia resumi-lo melhor, e ainda assim, apenas como introdução.

Trace uma linha sobre o chão e chame sua primeira metade de ‘o estado de Nevada’, e a outra de ‘o estado da Califórnia’; ao centro, experienciando o diabólico paradoxo de sê-los, os dois estados, as duas histórias ao mesmo tempo, um hotel relativamente luxuoso entregue a um paupérrimo comércio ou temporada. Fôssemos menos propensos ao ato de dramatizar o que a cisão das quatro arestas – tela, câmera – já deveria há muito ter aceito como a maior ferramenta de magia, os cômodos vazios e as diferentes taxas e acomodações dos quartos variando de estado para estado não deixam, no entanto, de pressurizar ao absurdo e ao hilário aquela particular conjunção de termos tendo de escolher e se submeter perante um rasgão de cuja constituição não participaram. É mais um teatro do que um hotel, só que estamos mais na posição de um panóptico de prisão em meio a este arranjo do que de silenciosos observadores defronte números. Todos são vistos – e, até que seja necessário ou que os fios da encruzilhada se rompam, sem ciência disto. Espraiados pelo pandemônio em latência, mas já visível, quase saboreável a explosão, uma negra que almeja uma carreira no canto, um solícito padre, um atrevido e escandaloso engomadinho de negócios, uma hippie trajando um rosto gélido, impaciente, e um enervado e moralista atendente para todos gerir. 

Mas os adjetivos podem selar o embrião de um engodo, pois que é nos artigos indefinidos que o arremate está contido: um/uma é o mesmo que dizer: mais um padre, mais uma aspirante... E, porém: o que vai singulariza-los é menos a distribuição inerentemente polêmica dos papéis e mais a plenitude ou plena ausência de motivos particulares para estar no hotel que não a exigência de uma parada. As adições não são menos problemáticas ou plausíveis, mas, como já foi dito, e agora de uma vez por todas: não tardará para que as aparências enquanto motes de fato se esfacelem e apenas sirvam de fornalha para fazer borbulhar o que consideraremos, aqui, como uma realidade de ação que coloca, num mesmo núcleo fechado, o presente como uma tragédia por aquilo que não foi visto no passado e que nos persegue – pior, aliás: não foi aceito por quem viu porque o desejo ou o sonho são mais facilmente reféns da ilusão de óptica do que costumam contra ela lutar. Triste que pareça a alguns “leitores” da obra, diante do que foi dito, que o vício de uma dessas personagens com a heroína seja um pretexto para falar do drama de uma subsequente ânsia febril de redenção, que o sussurro arrogante do patrão sobre o ouvido da cantora lhe denunciando a perda de tempo que é perda de dinheiro seja aceito sob a aderência superficial do que hoje se pode considerar o engajamento politizado. Goddard nos manipula uma armadilha, faz-nos crer que a miséria das personas já não estava contida nas extensas situações miseráveis que as lançaram no inferno com divisa.
 
Com esforço, pensemos na totalidade de um filme: ela está segura e simultaneamente maculada pela redução, pelo sintético: o que se vê corte por corte não é um todo, não é O todo daquele cosmos, se assim podemos chamá-lo, assim como as operações diante de uma duração são gestos mais ou menos adaptados de união ou dispersão (finais, não abertos, mas dúbios, lacunares, infiltrados de razões e afetos; ações que nos tomam por uma incompreensão; suposições apaixonadas sobre silêncios, historiografias ou desconhecimentos... a lista dos excessos a que nos lançamos na empreitada de entender, ou mesmo de segurar à mão uma vela, é infindável). Ainda que patético na execução da performance do messiânico-monstruoso-humano de inspiração em Charles Manson, é possível dizer da primeira aparição puramente sombreada de Chris Hemsworth à garotinha, ensolarado como um Apolo tirânico, que tudo já não estava dado ali, na imagem? A miríade outrora suspeita de flashbacks intensifica a desgraça daqueles assassínios tornando o passado essa fulgurância exemplar daquilo que se recusou a ver. Alvos de uma rasteira de certo modo semeada na aparição já tão carregada de signos que sua própria veiculação precisa vir travestida de teatralidades, travestimentos, formas outras, paga-se, rindo e resoluto, por uma refuta.

Mas personagens pelos quais a afeição começava a se enovelar, se não por sinceridade, por curiosidade, são arregaçados pelas tripas e se desmancham em vermelhos pelo ar. Aquele corpo possível de que falamos acima pode, uma vez acidentado com os choques de velocidade com que os twists encantam a trama até que ela seja uma questão quase inteira física, esse corpo pode reverberar ele mesmo os abismos e, não só por olho, não só por faculdade de entendimento, compreender das palpitações à inquietude que o inferno, se existe, é próximo do que ali se dá entre imagem e pele. Unidos pelo Demônio e diante Dele, como se a terra americana manchada de sangue e que o limite circunscrito pelo chão apenas reitera, sangue, vidros, suspiros, jogos, chamas e canções devém fantasmas e verdades nuas circundando o que sentimos como uma literal atmosfera. Desvelem-se as dúvidas e falsos arcaísmos sobre a inteligência ser uma aguda questão na fixidez da sedução: Goddard simultaneamente faz do prazer de ouvir a divina Darlene Sweet (Cynthia Erivo) cantar, este um gozo individual, “por si só”, um dispositivo de ilusão que a coloca, junto com todo o nó diegético, entre a leveza de um gatilho que lhe estouraria os miolos e a chaga que conduz e introduz toda a espinha narrativa: Daniel Flynn martelava o chão de madeira para resgatar montantes de dólares escondidos, mas sem o espalmar que é acompanhamento lúdico-musical da cantora, não teria dado as sucessivas estocadas no martelo de que prescindia para findar a grande Tarefa americana sem se dar a ouvir (ver): estufar os bolsos de dólares – e, em duplo sentido, não mais morrer. 

Num matrimônio ardiloso com o tempo passado e a invisibilidade das coisas todas e totalmente se enxergando, a câmera se avantaja numa sagacidade por retomadas e alternâncias de ponto de vista, incontinências da pupila sobre o que o ponto cego não antevia; ela repuxa e assopra sobre os corpos como se possessos por uma dança do instante com a guia das vontades mais íntimas. Aos olhos do jovem já acometido da religiosidade e danado pelo desvio, quaisquer palavras finais sussurradas aos ouvidos de alguém de maior idade são o reconforto de uma transição menos maldita através da morte. Enlaçados pelo que não tinham de fazer e por como tiveram de conjunta e literalmente sobreviver, malabares em posições múltiplas pelo ressuscitar de uma guerra imaterial em que o absoluto do poder joga com eles, destino e ação, decisões e rodas da fortuna se misturam até o indiscernível. Mas é uma ratoeira de negócios o que subsiste ali, não esqueçamos: o último a cantar é quem diz, dirá, a história.

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