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Críticas

Cineplayers

Antes do homem, o filme (ainda bem).

7,0

Um filme de Lars Von Trier é um evento em si em Cannes. Trata-se de um diretor que, independente de eventuais méritos e deméritos, sabe como poucos criar em torno de si uma potente aura mítica, como se tudo que fizesse ou dissesse fosse automaticamente importante, relevante e decisivo para o mundo cinematográfico. É um jogador, dos bons, como já apontava Marcelo Miranda neste texto. De Dogma 95 à pretensa trilogia anti-Eua, o dinamarquês consegue como poucos criar climas e expectativas que, no fundo, não só facilitam sua vida no que diz respeito a conseguir produzir seus filmes quanto fazem com que cada novo projeto já entre em circuito com metade do caminho andado: independente do que de fato estará na tela, seu público lá estará pronto a aplaudi-lo. E essa tietagem mal disfarçada de crítica e/ou jornalismo cultural (que não acontece apenas com ele, diga-se) cobra evidentemente seu preço: na coletiva do filme, do alto de seu trono ensimesmado, Von Trier faz patéticas brincadeiras evocando Hitler e o Nazismo – apenas para depois ter que se desculpar publicamente. 

Nada disso, claro, tem a ver com o filme propriamente dito, que parece ter ficado lá quietinho, como que esperando pacientemente a sua vez. E se todo esse circo acima descrito suscita nada menos que a preguiça deste que vos empunha a pena virtual, o filme por si só é bastante mais interessante. Melancholia tem uma estrutura simples, com um prólogo e duas partes separadas por intertítulos – em procedimento conhecido em sua obra, que assume o tom fabular e dá aromas literários à estrutura da obra como um todo. Uma fábula de conteúdo e clima apocalípticos já escancarados em seu prólogo – menos fetichista que o de Anticristo (Antichrist, 2009), mas de beleza tão friamente calculada como o mesmo – que colocará em jogo diversos temas caros ao seu cinema, inclusive, claro, aquele que lhe parece seu tema central, a maldade. No entanto, essa condição que para Von Trier parece inerente ao ser humano (como reafirma a personagem de Kirsten Dunst no filme) em Melancholia não esvazia as demais: e é justamente quando escapa desse determinismo que Melancholia é mais forte e instigante.

Melancholia é o nome de um planeta que rapidamente se aproxima da Terra.  A colisão significa o apocalipse. O enredo do filme de Trier se dará em meio a essa dúvida: haverá, de fato, essa colisão? Na primeira parte, chamada Justine (vivida por Kirsten Dunst), estamos em meio à imponente festa de casamento da mesma, que acontece em uma mansão cujas dimensões e arquitetura remontam a castelos reais: o local é uma espécie de Versailles, enquanto que Justine é uma versão melancólica de sua Maria Antonieta anterior, sempre deslocada, sempre falhando em cumprir o papel que lhe é reservado, alguém que parece ter interiorizado o fim como inevitável - como ela própria diz adiante: “eu sei as coisas”.

E esse sentimento acaba irradiando a todos os corpos e a todos os espaços. Eis a força da primeira parte de Melancholia: em encenação que remonta aos poucos bons filhos do Dogma 95 (especialmente Festa de Família [Festen, 1998] e Os Idiotas [Idioterne, 1998]), Trier filma o mal estar com a câmera na mão, dando tempo e espaço cênico para a performance dos atores, mas ao mesmo tempo promovendo quebras de montagem. A instabilidade, pois, se dá tanto pelo próprio movimento incerto da câmera como pela própria dialética teatro/cinema, performance/montagem, continuidade/ruptura, que enche a cena de energia própria sem deixar de o tempo todo reafirmar a instância criadora. Se em outros momentos e filmes assistimos a esse tipo de articulação para forçar um estado de tensão incômodo, aqui ele parece perfeitamente apropriado: como em todo cinema relevante, de alguma maneira a mise-en-scène constrói e carrega consigo as forças em jogo.

Na segunda parte, denominada Claire (Charlotte Gainsburg), passamos a acompanhar mais de perto a irmã de Justine, Claire, bem como a John (Keith Sutherland), seu marido. Passada a festa, é hora de esperar a chegada (ou passagem?) de Melancholia. Racional e ponderado, John confia na Ciência, que recusa a possibilidade da colisão, enquanto Justine, além de não ter dúvidas quanto à inexorabilidade da mesma, não parece especialmente amedrontada, já que, para ela, a vida humana é marcada essencialmente pela maldade. Claire está em uma espécie de meio termo: não encontra abrigo nem na certeza cientificista do marido nem no ceticismo fatalista da irmã. No entanto, Von Trier cria espaços de ambiguidade nessa lógica, que nunca se mantém inteiramente cristalizada.  É um filme menos preocupado em responder e ensinar e mais preocupado em potencializar seu universo e seus personagens, ainda que, como habitual, a grandiloqüência incomode. Deixasse o filme falar por si próprio e estaria, agora, com menos problemas.

Visto no Festival de Cannes 2011.

Comentários (7)

Rafael Medeiros | segunda-feira, 18 de Junho de 2012 - 08:04

Excelente filme.

Dou nota 10 sem medo de errar.

Renan Fernandes | segunda-feira, 20 de Maio de 2013 - 15:58

10,
sou fã desse filho da mãe.

Marlon Tolksdorf | quinta-feira, 02 de Janeiro de 2014 - 11:46

Um retrato da vida de Von Trier: riquinho e desocupado e que pela falta do que fazer (leia-se TRABALHO) fica se fazendo de deprimido em crise existencial. Mas vai carpir um lote.

MARCO ANTONIO ZANLORENSI | terça-feira, 09 de Setembro de 2014 - 14:26

Sim, sim, sim, esse filme pode produzir sono, foi o que fez comigo, tem boas partes mas arrastado demais, terrível demais, judia muito do espectador para produzir um fim com uma bela imagem de um planetão olhando para a gente quando se olha pela janela. Se a intenção era mostrar no primeiro ato a vida fútil de alguns humanos enquanto um planeta vem acabar com a gente conseguiu, mas meu deus que festa chata! Segundo ato melhor, bem melhor, dai podemos ver alguns efeitos da aproximação de Melancolia! Pelo menos nisso eu dou dez para ele, na escolha do nome do planeta.

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