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Críticas

Cineplayers

A música como instrumento de congregação e significação.

7,0

Ora, ora, e não é que dois raios podem cair no mesmo lugar? Prova disso é esse Mesmo Se Nada Der Certo, primeira empreitada no longa-metragem do diretor John Carney após o seu inesperado sucesso indie Apenas Uma Vez. Nos sete anos que separaram os dois filmes, a história do rapaz irlandês e da garota tcheca, ambos sem nome, que se cruzam ao acaso pelas ruas de Dublin, e que pouco têm em comum a não ser a paixão pela música (ele toca violão e ela, piano), cresceu em importância, ultrapassou o limite da tela e virou objeto de culto ao redor do mundo. Também pudera: era difícil resistir à universalidade, simplicidade e sensibilidade daquela improvável história de amor, à dupla de protagonistas que, de tão espontânea, sequer parecia estar interpretando, e ao agradável set list de baladas românticas (uma delas – Falling Slowly – vencedora do Oscar daquele ano). Era natural que os fãs ansiassem pela volta de Carney à ativa, ao mesmo tempo que existia o receio de que ele não cumprisse as expectativas que naturalmente passaram a existir em torno deste trabalho. Podem deixar o medo de lado: Mesmo Se Nada Der Certo (mais um infeliz título nacional) é tão bom quanto seu predecessor.

Mesmo Se Nada Der Certo trabalha basicamente com os mesmos elementos de Apenas uma Vez: o poder aglutinador da música, o amor platônico que não pode se consumar, e as famílias que vão se moldando a partir de separações, reconciliações e novas separações. Se a espinha dorsal é bastante semelhante, o novo filme de Carney ganha uma identidade própria ao ambientar sua história em Nova York e ao contar com a presença de atores mais conhecidos do grande público como Mark Ruffalo, Keira Kneigthley e Catherine Keener, o que, de certa forma, quebra um pouco aquele ar de cinema independente incrustado no filme anterior. De quebra, Carney, cineasta com  formação musical, ainda consegue abordar novos temas com os quais tem familiaridade, como o mercado de downloads de canções pela internet, a tensa relação entre as gravadoras e os artistas, e a superficialidade, egocentrismo e narcisismo das pessoas envolvidas com o showbiz.

Dan (Mark Ruffalo) está em crise. Separado da sua ex-mulher Miriam (Catherine Keener) e do convívio com a filha adolescente Violet (Hailee Steinfeld), e demitido da gravadora que ajudara a fundar, sua rotina é um círculo vicioso autodestrutivo: de noite, ele tenta esconder as frustrações pessoais e profissionais em companhia de altas doses etílicas; de dia, permanece vampirescamente na cama se recuperando das fortes ressacas. Entre uma dose e outra, ainda encontra tempo para ouvir no rádio do seu carro as demos de novos artistas, procurando naqueles vários CDs – e sempre se decepcionando – um jovem talento em quem valha a pena investir. O estalo vem quando ele ouve num bar a apresentação solo de Gretta (Keira Kneightley), uma cantora desconhecida, autora de suas próprias baladas, com óbvias deficiências na presença de palco, mas que podem ser compensadas com um bom arranjo musical. Ninguém naquele recinto percebe, mas Dan tem certeza que tem um diamante bruto nas mãos.

Gretta, por sua vez, também está em crise. Apaixonada, ela abandonou família, estudos e sua Inglaterra natal para tentar a sorte na Big Apple junto com Dave (Adam Levine), seu namorado e também cantor, após uma das canções dele ter estourado na trilha sonora de um filme hollywoodiano qualquer. Não demora muito para ela se tornar uma mera coadjuvante dentro daquela engrenagem do mundo musical e ser passada pra trás por uma das várias fãs do seu amado. Ela nem desconfia, mas seu ponto de virada surge quando seu amigo Steve (James Corden) a convida para cantar no palco de um bar e, entre todas aquelas pessoas que conversam como se ela não estivesse ali, Dan presta atenção na sua música.

Dan e Gretta recolhem seus cacos sentimentais e combinam gravar uma fita demo por conta própria, nas próprias ruas de NY, a céu aberto mesmo, em plena luz do dia (ou da noite). A vida dos dois está prestes a mudar.

Assim como acontecia em Apenas Uma Vez, este novo longa de John Carney se calça não apenas na música (indiscutivelmente um elemento importante) mas sobretudo no bom desenvolvimento dos personagens. Algo raro no cinema de hoje, de narrativa mais apressada e atropelada, aqui as figuras centrais e coadjuvantes têm tempo suficiente para respirar e se apresentar como pessoas reais. Dan, por exemplo, é visto como um sujeito cético. Assim como a indústria fonográfica, que hoje tenta se reinventar após o tsunami provocado pela internet e downloads ilegais, ele também já viveu dias melhores. No meio de todos aqueles CDs arremessados no meio fio, Dan procura mais a si mesmo do que a um jovem talento. Ele quer encontrar o velho Dan do passado, alguns litros mais magro e ainda apaixonado pela vida e pela música, quando estes conceitos eram praticamente indissociáveis. Já Gretta é a pureza em pessoa. Detentora de um talento único para compor e interpretar, ela ainda vê a música como uma arte intocável, virginal, e que não pode ser objeto de manipulação externa. Ingênua, considera Bob Dylan o último exemplo de artista realmente autêntico (no que é logo desmentida por Dan). Se essa sua visão beira ao juvenil, Gretta tem os dois pés na realidade quando o foco recai sobre sua vida pessoal. Escolada por decepções amorosas recentes, ela desconfia do interesse de Dan pelo seu trabalho, afinal não é sempre que um artista desconhecido tem o seu dia de Judy Garland [referência clara a Nasce uma Estrela]. Por fim, Dave, o terceiro personagem de destaque na história, parece revelar a opinião de Carney sobre o próprio mundo do showbiz musical: egocêntrico, narcisista, autocentrado, ensimesmado, falso, infiel, fabricado e superficial. Não à toa, Adam Levine, o ator que defende o papel de Dave, é um dos integrantes da banda americana de pop rock Maroon 5, o que o transforma numa espécie de alter-ego de si mesmo.

Justamente por entendermos a psicologia e a motivação destes personagens, nos compadecemos com suas angústias e tristezas (a frieza com que Dan é tratado por sua ex-mulher no início da projeção, seu desentendimento com o sócio da gravadora, a percepção de Gretta sobre o que aconteceu na viagem de seu namorado a Los Angeles etc.). Ficamos satisfeitos com o sucesso e a felicidade delas. Secretamente, nos colocamos do lado errado da equação e torcemos para que amores platônicos se transformem em amores concretos. Enfim, acreditamos naquela gente. Sem isso, de nada adiantaria atores carismáticos e talentosos, e uma sequência de baladas românticas bacaninhas. Sem uma história forte por trás, elas simplesmente se tornariam insuportáveis e o filme naufragaria por completo.

Mesmo Se Nada Der Certo pode ser visto como um conto de fadas. Essa leitura mais livre favorece o filme em duas frentes: os mais céticos aceitarão mais facilmente a própria premissa da gravação de um CD demo ao ar livre, sem a licença prévia da prefeitura local, sem a reclamação dos vizinhos, e sem a interferência de pedestres, ruídos e turbinas de aviões. Os demais se deixarão levar por algumas belas sequências criadas por Carney, como aquela que Dan imagina toda uma orquestra por trás de Gretta, o que confere um novo colorido à apresentação e à canção, ou o passeio dos dois por uma Nova York edulcorada, romantizada e espantosamente acolhedora, ao som das músicas gravadas nos Ipods de cada um (uma cena que remete, inclusive, àquela em que a florista tcheca de Apenas uma Vez caminha da farmácia até sua casa, de pijamas e pantufa, escutando pelo fone de ouvido sua canção recém mixada). Esta sequência, aliás, talvez resuma o tema que mais interessa a Carney: a ilimitada capacidade da música de atribuir significados às coisas, por mais banais que elas sejam.

Carney aproveita também para reforçar a mensagem que já estava no seio de Apenas uma Vez: o poder aglutinador da música. Inicialmente a ideia de Dan e Gretta de criar um CD demo ao ar livre surge como forma de se contrapor à força da gravadora. À medida que a coisa vai dando certo, a dupla, de certa forma, abandona essa proposta inicial e passa a se reunir pelo simples prazer de tocar. Os violonistas entram na onda e aceitam fazer parte do projeto sem remuneração. Idem com o tecladista, que abandona um emprego fixo em uma escola de balé para se dedicar àquilo em que ele realmente acredita, mesmo que voluntário. Em certo momento, Dan incorpora a uma das gravações de rua um coro mirim improvisado. A banda serve, inclusive, para Dan se reaproximar da sua filha, dona de um inesperado talento na guitarra. A música como uma linguagem comum e universal: Carney parece nos dizer que por essa sim vale a pena lutar.

O elenco segue o ritmo ameno das baladas românticas da trilha sonora. Mark Ruffalo, chamado de o novo Marlon Brando quando se destacou em Conte Comigo, novamente contribui como uma nova atuação relaxada, low-profile, mais ou menos no estilo daquela que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante em Minhas Mães e Meu Pai. O jeitão simpático mas cheio de defeitos de Ruffalo humanizam e nos aproximam do personagem. Keira Kneightley, por sua vez, abandona os pesados figurinos dos trocentos filmes de época que estrelou nos últimos anos, e finalmente participa de uma história contemporânea. Sua feição delicada e frágil é ideal para a composição de Gretta, e a sua voz, mesmo em back vocal, é adequada o suficiente para não fazer feio nas apresentações musicais. Adam Levine parece exagerar nas caras e bocas em alguns momentos, sugando o ar de todas as cenas que participa. Para lhe dar o benefício da dúvida, essa caracterização não deixa de ser coerente com a psicologia egoísta da sua personagem. Hailee Steinfeld cresceu e encorpou desde sua indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por Bravura Indômita, e seu jeito meio desengonçado de meninona cai bem ao papel. Já Catherine Keener, bastante envelhecida, repete a experiência de Capitão Phillips, e é a única integrante do elenco que se pode considerar desperdiçada.

Há defeitos? Sim, claro! Há mais semelhanças com Apenas uma Vez do que o recomendável; o  roteiro se alonga desnecessariamente em alguns momentos (a brincadeira de estátua durante uma festa é dispensável, o flashback inicial de Gretta se estende um pouco além da conta, e determinadas apresentações musicais poderiam ser encurtadas), e as performances musicais, ao contrário do filme anterior, são previamente gravadas em estúdio, o que deixa tudo com um ar meio fake. Mas são problemas menores diante das suas demais virtudes. Mesmo Se Nada Der Certo não pretende reinventar a roda, mas apenas contar uma história humana, com personagens críveis, e embalada pelo poder universal e pacificador da música. E nisso, o filme sai se muito bem.

Comentários (2)

Francisco Bandeira | sexta-feira, 26 de Setembro de 2014 - 17:50

Apenas uma Vez ali, ao invés de Você 😁

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